sexta-feira, 23 de dezembro de 2011

Morto Vivo.


Da terra úmida muito se alojou embaixo das unhas, e sua aparência, inchaços, pústulas e vermes em nada lhe favoreciam os humores, e então deixou a cidade dos mortos, em suas mangas de flanela e calças pregueadas de brim, que eram de sua predileção.
Na caminhada consultou a boca e deslocando uma barata notou a falta do único dente de ouro.
Mortos realmente não têm dignidade!-Sussurrou de si para si, indignado com a violação dos coveiros.
Voltando para casa abraçou mulher e filhos, e digo-lhes, a inocência dos pimpolhos guardou-lhes a vida; mas da mulher só se ouviu que mortos não retornam da sepultura.
-Infelizmente, meu amor,  terás a oportunidade de saber se isto é ou não verdade...-O susto ceifara sua vida.
Cambaleou pela parentela e amigos, aumentando a contagem de corpos até que se ajustou à sua solidão e se foi, buscando um destino ao menos digno.
Quando os instintos antropofágicos foram despertos se recusou em trair a proposta vegetariana, se alimentou desde então de carne de soja, e se encontrou casa,foi sob as lonas de um circo.
-Sua maquiagem realmente convence!Era elogio de todo tempo.
-Quanto foi necessário para terminá-la?
-Vinte e dois anos, e uma vida inteira- Era a resposta triste decorada para estes casos.

Anderson Dias Cardoso.

segunda-feira, 19 de dezembro de 2011

O Mercado.

A pobreza não o permitiu deixar imóvel, ou algo de valor e ele sentiu o alívio quando assinou a papelada e conferiu a conta, agora, respeitável.
A negociata era mais segura que apólices e prescindia de qualquer formalidade e investigação e fora indicado por quem se utilizara com parcimônia destas trocas.
Sentiu-se desconfortável, eles, um tanto felizes e ele terminou seu caminho abraçado à um desconhecido coberto de branco limpo.
-Me orgulho de sua coragem e altruísmo... não menos que seus filhos e esposa, aposto!-Foi a única frase guardada, de todo encorajamento proferido.
Na sala estéril o deitaram na mesa.
Era homem saudável, de pouca bebida e nenhum outro excesso e lhes serviriam bem ao menos o coração, rins, córneas, e fígado...
Salvara de uma vez sua família, e uns outros tantos desconhecidos.

Anderson Dias Cardoso.

quinta-feira, 15 de dezembro de 2011

Traduziram Um Texto Meu!!!

Hoje a Rafa Lombardino, da Contemporary Brazilian Short Stories (uma empresa de tradução situada nos Eua) postou a tradução de um texto meu no site homônimo!Estou muito contente!

O Link é http://sites.google.com/site/brazilianstories/brazilian-stories/fetish
Dêem uma passadinha lá!
Abração à todos!

quarta-feira, 14 de dezembro de 2011

Frágeis Existências 11°Capítulo.

...E vieram do Grande Vazio e do Silêncio as crianças andarilhas do vácuo; eram Pedil e sua irmã An-Haman.
Eram imagens idênticas de si até que o tempo modelou seios e alongou as mechas de An-Haman, e teceu pelos no queixo de seu irmão, dos quais ele trançou como um feixe de trigo.
Dos excessos do corpo lhes incomodavam o peso das madeixas; que estendiam se período solar e meio em seu comprimento, enquanto a barba de Pedil descia e serpenteava seu arranjo como criatura delicada e resplandecente de igual comprimento; e quando as unhas se encurvavam em seus dedos decidiam pelo corte e em juntá-las aos fios aparados e os amontoavam e ligavam por saliva, construindo mundos.
Tão imenso conjunto de formas que o Vazio se fartou de presenças, e o Silêncio havia sido recortado pelos gritos de júbilo dos irmãos que cirandavam enquanto criavam planetas e seus sistemas.
-Devem se expandir para além deste lugar, preencher e substituir esta realidade para que sejam possíveis outros deuses, e quando o Vácuo der lugar à Plenitude e o Silêncio se tornar em Cacofonia, estes se unirão a engendrar um outro casal que vos equivalha, então, se unirão à eles para gerar o restante dos seres - Disseram os pais- Devem esperar por seus pares!
E então deixaram a presença destes e se foram com suas cantigas, rodas, o produto de seus corpos se distanciando em constelações e astros que lhes ficavam às costas.
Na empreita, aqueciam alguma formação construída, com o calor de seus corpos até que se incendiasse e a abandonando tinham-na como  luzeiro e punham-se então a formar à sua volta um mundo –abrigo ao qual voltavam após construir galáxias.
Num dos lares fizeram nascer uma árvore de todos os frutos, e sua folhagem era tão densa que era noite sob sua sombra; e naquele lugar se estabeleceram por tantos ciclos quantos já haviam vivido.
Os pais haviam se perdido na distância, e em sua solidão se notaram como corpos atraentes e espíritos gêmeos; voltando de uma nebulosa não condensada se encontraram como amantes sob a proteção do véu de folhas.
Amaram-se ali outras vezes, e a árvore invulgar começou a estender raízes e galhos e derramar seus frutos, que agora se transformavam em cópias de estrelas e planetas até que não pudessem enxergar onde agora alcançavam.
Os pais sofreram saudades, e vendo que mesmo os gritos de Silêncio não alcançavam os filhos tomaram de sua escuridão para formar corvos, dos quais foram libertos para que buscassem os objetos de afeto.
Houveram milhões de asas, e o crocitar de tantas aves rompeu de vez a monotonia da criação intermitente.
De todos os curiosos foi Drognew a avistar a mulher loura em trabalho de parto, e constatar os cuidados de seu igual serem assomados por beijos de consolo às penas, nos lábios fugidos de cor.
Voltou, o corvo, em asa ligeira aos ombros de seus donos, e ao contar que a mulher gerara de seu irmão se enfureceram e consumiram os adornos construídos em volta, e os corvos revoavam todos em redor dos gigantes primordiais.
-Isto não devia ter sido...
-Desrespeitaram o conselho...
-Devem nos entregar sua semente, ou, que nunca voltem à nossa presença!
O caminho foi desenvolvido em meio tempo, e todos os corvos logo cobriam a extensão da imensa árvore onde o casal já abraçava seus filhos.
-As crianças foram amaldiçoadas, devem ser entregues à destruição!Crock!
Um cor ensurdecedor respondeu à ultima palavra do corvo.
-Eles são fruto de amor- Se lamentou Pedil.
-Desobediência!!!Crock!
E todos os outros responderam crock!
-Digam que voltarão assim que as crianças se desapeguem do seio e minha dor será menor - Implorou a mãe.
E então foram deixados pelos mensageiros.
Fugiram para sempre da presença dos pais, e as crianças cresceram até à razão e foram escondidos  em uma terra quando os corvos foram enviados à espiar e devorar a família.
O sangue de Pedil e Na-Haman salpicou o horizonte, até que seus pais teouxeram chuva para lavar o espaço, e foi assim desde então, como prévias das tempestades.
Estes irmãos também se amaram e, pela maldição de seus antepassados lhes nasceram gêmeos opostos, aprisionados em um mesmo corpo, e houve maldade e bondade em cada qual que nascia desde então... E esta é nossa descendência.
A voz da velha soava forte, acompanhada do crepitar da grande fogueira.
Todos guardavam um silêncio respeitoso e faziam suas preces em repúdio à Festa da Fartura.
-Voltemo-nos aos nossos pais, dos quais se sacrificarão em nosso favor- E outra voz a interrompeu com força dobrada.
-E eu achava que tinha ido a profetizar ao norte... Queimem à todos!
O Apóstata dava suas costas enquanto seus soldados lançavam uma multidão ao fogo.

 Continua...
Anderson Dias Cardoso.

domingo, 11 de dezembro de 2011

Tema Recorrente,Outro Ponto de Vista...

Só sabiam se chamar Meiyng, e de suas vendas de tênis contrabandeado.
Falava pouco o português, e quando lhe confiscaram o que havia de a manter viveu em miséria, estendendo a mão à quem passasse para recolher um pouco de bondade e comer rasos pratos de sobras.
Às vezes preparava lamen em latas de aveia, e assim foi até encontrar no lixo a panela de alumínio batido.
Dinheiro era sagrado, escondido sob a palmilha do mocassim, incomodando os passos, mas logo que recebia moedas as trocava por notas e o andar parecia mais leve.
Ela estava ali, sempre sozinha em seu canto sujo, esmolando sob olhares de deboche e piedade.
O que mais incomodava aos passantes era este seu abandono; mas quando o sapato se encheu de riquezas foi ao centro e voltou às ruas trazendo um cão!
A dobradura canina, raça Sharpei, veio ornada de laços de fita e desfilava como peça estranha ao lado da esfarrapada chinesa.
-Chuang Mu!-Ela chamava, e a bola enrugada saltitava para receber suas carícias, e se a dona se levantava ela a seguia em sua direção e ofício.
Não houve que não oferecesse mimos à cadela, e ela cresceu recebendo biscoitos e quitandas, e quando num inverno Meiyng se lembrou de casa, a carne da companheira cozia na panela amassada.
A chinesa calejada quase esquecera os sabores da sua saudosa nação...

Anderson Dias Cardoso.

quinta-feira, 8 de dezembro de 2011

Dédalo e Ícaro.

Testou os arranjos mecânicos das paredes gêmeas, que se ajeitavam ao som de qualquer movimento tomando a configuração de caminhos diversos.Se deu por satisfeito e seguro pela dificuldade que ele próprio encontrara em deixar o labirinto.
Dissera a Dédalo que repousasse o martelo e talhadeira e aguardasse o prato farto que traria, junto ao perdão, quem sabe, o agradecimento de Minos; e então estava naquele instante diante da figura temida.
Depois de se dobrar nada ousou além de elogiar sua própria obra.
E ele disse das paredes rijas de obsidiana, dos movimentos inteligentes e de arranjos complexos.
Haviam canaletas de captação de gordura de vítimas para que as engrenagens dos transportes mantivessem a eficiência; o tamanho reduzido do compartimento era seu orgulho!
Conseguira o efeito de um mundo num espaço exíguo, e poliu todas as superfícies até se tornarem em espelho, multiplicando-se assim o lugar num pequeno infinito.
-Eles se encontrarão com sua derrota todas as vezes que se mirarem em qualquer parede!
Dédalo detalhou cada artifício, enfatizou toda inovação e o que encontrava em seu interlocutor era o desprezo de marido traído.
-A caravana logo chega trazendo o filho de minha mulher, como saberei se todo este seu arranjo impedirá que tanto o “Touro de Minos” quanto os escolhidos me escapem, me causando vergonha e terror?
-Astérion estará guardado, e quando lhes apresentarem seus jovens eu asseguro que haverá a consumação de seu festim!
-E eu estarei posto ao fim da armadilha, antes de deixar nela a criatura, e constatarei se, assim como me prometeu teu próprio filho, nunca encontrará o caminho. Só então deixará Creta para teu exílio.
-Na insolência da certeza de um trabalho muito bem acabado lhe peço, quando perguntarem de minha memória os aedos, diga que deixamos as ilhas, eu e o jovem Dédalo em asas de cera, e que o pobre se encantou pelo sol...
-Uma morte enfeitada de asas sempre é coisa bonita!Vejo que é engenheiro também de histórias-E então os dois se riram, e cada qual tornou ao seu lugar.

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 4 de dezembro de 2011

Frágeis Existências 10°Capítulo.

Esperava o prato vespertino e a demora o incomodou muito; levantou-se meio desajeitado sobre a única perna se foi a investigar algum movimento nas sombras que já se manifestavam à boca da noite.
Viu uma luz se acender aqui, ali, até que todas as poucas que agora eram postas a queimar formassem manchas claras nos mares de escuridão.
Preocupou-se quando a dor de fome subiu a bile à boca, recordando-se que em momentos de tensão municipal a ausência de qualquer próximo podia bem dizer más notícias.
Arriscou a descida íngreme da fina estrada de sua casa e, amparado pela forquilha cortada sob medida para uma pouca autonomia reivindicada cambaleou quase firme por umas oitenta braças.
A sandália, rebelde por não ter sido atada bem ao tornozelo dançava sob os pés e conspirava com os seixos para o levarem ao chão.
A empresa deu mais que certo, o pé vacilou na redondeza das pedrinhas e foi se desprendendo do galho e seu equilíbrio até que as nádegas se sujavam na poeira do caminho e as costas se arranhassem na agudeza de pedras menos delicadas.
As costas se molharam um pouco de sangue, os tendões que atavam o ferimento esticaram na queda, forçando a pele até o rompimento.
A dor o engasgou.
Tossiu, tossiu, tossiu, e quando procurou ar o pulmão se encontrava ocupado em contrações e distensões involuntárias e violentas, e ele sufocou.
Tentou altear o corpo, mas não houve força que bastasse, os olhos lacrimejaram muito e o peito rouquejava o som de sua insuficiência.
O corpo parou suas contorções, se acalmou em uma pose desconfortável enquanto os ferimentos de sua ânsia e queda escorriam um pouco mais de sangue.
Quando a consciência resolveu-se por voltar ao corpo uma ponta de sol escalava o horizonte, ele notou sua escora lançada a cinco braças de seu lugar e quando baixou os olhos à si encontrou contornos escurecidos de sangue e muco.
-Acho que terei que buscar meu desjejum!-Disse à si mesmo enquanto verificava que o ferimento não se agravara tanto quanto imaginava.
  Desta vez atou bem a correia, e andou seguro, em passos mais curtos até encontrar uma porta a se bater.
-Sabur?-A porta se abriu desconfiada, e um rosto duro, antigo, mas de poucas rugas o atendeu com voz abafada.
-Foi recrutado para cavar poços e saltou antes do sol... -A mulherzinha não o convidou a entrar, antes, deu um passo fora e tratou com ele ali mesmo.
-Sibal, assim como vê, estou ferido... Estava sendo cuidado por Quion e sua família, mas ontem e ainda esta manhã não tenho notícias deles e já me preocupo!
A mulher pareceu pouco sensibilizada com o aspecto sujo e manchado de Dreh, pensou um pouco e abriu a porta atrás de si.
-Sabe que não gosto de meu marido em companhia de bebedores de taverna, e desde que somos vizinhos o conheço bem por experiência e conversas de Sabur e tantos outros... -Respirou como se lhe fosse exigido grande esforço para manter os bons modos e o tom de voz- Entre que lhe preparo pão e leite e mando que Latar veja mais adiante se alguém sabe de Quion ou qualquer outro diabo que queira.
Dreh sabia bem como ser desprezado sem demonstrar qualquer emoção, acompanhou a entrada da pequena mulher e se sentou na primeira cadeira que achou.
-O sangue de suas roupas me está enojando agora que não me concentro na raiva que senti de você quando me bateu à porta, vou lhe preparar uma muda limpa e alguns trapos para emendar o ferimento, e se quiser lhe fervo alguma água para se lavar.
-A virtude é maior quando aplicada ao inimigo!Agradeço e aceito a caridade!
Dreh deixou a sala pouco mobiliada e quando cruzou a cozinha viu reluzir uma coleção de tachos e panelas de cobre batido, algumas vasilhas de barro ornado guardavam água fresca e o fogão ardia um fogo ainda tímido que aqueciam o forno e um pouco de água para o banho.
Ela gritou o nome de seu filho enquanto ordenava que se levantasse a trouxesse noticias de Quion, não houve qualquer resposta.
-Aposto que algum cobrador lhe arrancou a perna como pagamento, ao invés do que se diz por ai que teria sido comida por cães!- O homem sentado sorriu com a certeza de um outro sorriso se formando nos lábios dela após o comentário ferino.
-Como sempre as mexeriqueiras foram pouco eficientes em seu ofício de relatar a vida alheia!Não, minha perna foi mordida, não comida!E, novamente não, cobradores não tem nada à ver com a história visto que pago o que devo sempre que posso e gozo da confiança de todos que me conhecem bem!
-Meu primo Bifug não endossaria seu comentário e além dele posso citar ao menos uma dezena de outros de mesma opinião caso não se sinta constrangido!
-O cheiro de seus pães continua maravilhoso!-O sorriso cínico era resposta pronta àquele tipo de situação.
-Vá ao banheiro que eu lhe levo a água em instantes.
-Latar, garoto preguiçoso, levante agora antes que me irrite e faça o que lhe mandei!-A voz agora era rude.
O banho foi deveras dolorido, o sangue havia se agregado ao tecido e quando este foi arrancado teve vontade de chorar; quando saiu desfilava uma policromia absurda em duas peças de mangas muito compridas e barras que se arrastavam no chão batido.
-Belas roupas!Acho que me devolveram até um pouco de cor ao rosto por reflexo!
-Eram de um primo anormal.
-Aposto que me caíram melhor que nele!
-Pode se sentar à mesa, ai tem um bom bocado de pão, leite, duas espigas de milho e manteiga de cabra, e é tudo que posso oferecer!
Dreh tomou o lugar indicado e logo a mão da mulher se estendia à cana em que ele se apoiara.
-Me empreste sua perna que tenho que despertar um preguiçoso espertinho!
A mulher desapareceu rapidamente atrás das cortinas improvisadas e logo se ouviram cochichos, depois, outros gritos e então um garoto de pouco mais de dezoito primaveras entrava à cozinha com sua testa marcada. Quando os passos da mulher se aproximaram de onde estavam o garoto olhou choroso ao hospede situacional e tomou o rumo da rua.
-Com conversa tudo se resolve!
Comeu deliciosamente tudo que havia posto à mesa e esperou sozinho no ambiente até que o garoto chegou anunciando o que acontecera desde uns oito quarteirões.
-O Sábio Apóstata convocou um ajuntamento na praça do palácio!Quion e a família foram presos sob a acusação de intentarem deixar a cidade!
Enquanto a multidão se deslocava rumo ao lugar ordenado Dreh se apoiava aos ombros do garoto e sua mãe para que fosse possível chegar em prazo.
Andaram um tempo e meio, até avistar a praça e sobre a escadaria haviam encaixado imenso e fino cone acústico de bronze posto para fazer alcançar a voz do falante aos que estivessem mais afastados.
A espera fez formigar a extremidade ferida, e foi exatamente enquanto se abaixava para se coçar que a voz trovejada captou sua atenção.
Os três homenzinhos estavam postos junto ao aparelho, o que agora se vestia de negro era o centro da formação e então as vozes se emendaram no pronunciamento:
-Nós avisamos, e ainda tentam fugir!- O sincronismo das vozes, e o efeito que produziam como coro era dos mais impressionantes.
-A segurança da cidade depende da permanência de cada indivíduo e família neste lugar até que as chuvas nos aliviem; então, cada qual deve desempenhar seu ofício com presteza, paciência e esmero...
A multidão silenciara de todo, e até os movimentos desta pareciam suspensos pelo respeito e curiosidade.
-Cavadores de poços, construtores de barragens, reparadores de valas de irrigação; todos são responsáveis pela sobrevivência de todos e a partir de agora serão fiscalizados por uma comissão de inspetores de engenharia, e serão guardados pelo recentemente criado exército municipal!
A frase terminou com a entrada de uma outra multidão armada de lanças, escudos e espadas que se pôs diante do palanque.
-Estes, que se põe corajosamente diante de nossos olhos são os melhores de vossos filhos, e eles foram reservados para guardar a segurança de nosso povo de agora em diante.
-Vigiarão a noite, o dia, o trabalho, o ócio, e serão os guardadores dos limites da cidade!
-Ninguém passará por eles- As vozes moveram à um tom sorridente, tenso-, e como prova disto temos um exemplo de como nossa fiscalização é eficiente, e de como agiremos energicamente em caso de desrespeito à nossa sociedade!
Um outro pequeno grupo foi apontado pelos três homens, ao lado esquerdo, aos pés do madeiro.
-Niad... Quion... Chantira...-A boca se secou de todo, e Dreh tentou gritar seu protesto, mas logo um cabo de espada lhe quebrava o nariz.
-A família de Quion planejava abandonar nossa presença, então, graças ao nosso amado irmão Dalu; que nos denunciou que haviam oferecido e ofereciam suas terras à todos a quem encontrava fomos ter com ele e, interrogando ele e sua família descobrimos ser verdade o que nos foi dito!
-Desgraçado!-Gritava Dreh, enquanto mais um par de homens afastava com violência Sibal e o filho e se juntavam ao esforço de silenciá-lo-É este maldito que anda fazendo propostas de compra aos que querem partir... -Uma mão enorme lhe segurou os cabelos, outra tapou lhe a boca.
-Mostraremos nossa severidade e benignidade escolhendo um que pague a traição da família e exemplifique à eles e a todos para que nada disso ocorra novamente!
-Enforquem a pequena!
Outros fortes se movimentavam ostensivamente em meio à multidão, o aleijado continuava a gritaria e a família culpada era segura enquanto imploravam pela vida da filha.
A garotinha, como quem nada entendesse seguiu, mãos dadas ao carrasco até o alto da forca; a confusão e o medo a haviam lhe apagado os instintos.
O homem ajeitou o laço ao pescoço, ela ajeitava o vestido. Ela sorriu, sem saber por que... Foi um sorriso muito bonito, ao qual o homem retribuiu puxando a alavanca...

Continua...
Anderson Dias Cardoso.

quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Uma Questão Filosófica.

Crescia ao lado, dolorosa e assustadoramente junto ao pescoço e é claro que houve desespero e desconforto.
Não era tumor, aliás, não havia nome ou registro clínico de um apêndice tão complexo e de rápido crescimento e  logo que surgiram olhos e expressões na massa estranha se viu socialmente abandonado, como peça grotesca de antigos circos de horrores.
Nos dias de desemprego e solidão verificava no espelho a evolução de pelos e tecidos e se contorcia em pequenos sustos até surgir boca e um outro pescoço altear o segundo crânio.
Não era outra alma, e o observava com a mesma tristeza com que ele próprio o observava e foi esta mesma boca recente quem se abriu primeiro e disse sentir muito.
Foi a única frase; e ele carregava envergonhado o apêndice silencioso aonde ia, em todos os lugares de mau-querer, seguido em olhar por olhos que de alguma forma também eram seus.
Além do corpo, compartilhavam tristeza.
Completaram outro ano de convívio mudo e uma das cabeças cogitava suicídio, ou decapitação, a outra respondia com a mesma estampa aos humores turbulentos do corpo compartilhado.
Então o corpo  foi direcionado pela cabeça ancestral, e a outra não resistiu; e tendo na mão esquerda a faca ameaçou um corte.
-Suicídio ou homicídio, qual será o ponto de vista!?
O primeiro par de olhos se fechou, logo, o segundo...

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 27 de novembro de 2011

Frágeis Existências 9°Capítulo.


O prato era pobre em carne, e de abóbora nem gostava muito, mas a fome deu boas vindas a cada bocado engolido.
A garotinha esperava; segurava um sorriso bonito e curioso enquanto o via mover vez em quando o coto.
-Dói?- Arriscou a pergunta e avançou para um toque, que ele repeliu com pouca gentileza.
-É muito recente, e seu pai me cuida com pahije, não a toque, pois ainda me causa desconforto e asco.
-Nós iremos embora na próxima lua- O sorriso se manteve a despeito da mudança de assunto- Papai disse que não poderemos levar o Lasef, e que logo que chegarmos a Raish me comprará um outro cachorrinho!
-Não gosto muito de cães, acho que devia pedir um coelho ao seu pai, eles são menos perigosos!- Achou engraçado seu próprio comentário e se juntou ao sorriso da garotinha.
-Eu odeio abóboras- o tom dramático e confessional foi associado à uma olhadela ao prato de Dreh; era uma demonstração de amizade em forma de segredo e ele mudou seu aspecto para conferir importância ao que concordava.
-Papai disse que as abóboras são para poupar dinheiro para as caravanas de alimentos nas estradas que vão para além das cinco cidades, ele disse que a comida fica muito cara na viagem...
-Me disseram que os preços das caravanas de travessia são dez vezes mais altos, e dos que fugiram das cidades, muitos se tornaram em assaltantes- A voz se acrescentou ao ambiente, pouco tensa e nervosa.
-Eu conversava com Banira, ela cresceu bastante e o sorriso brilha tão fresco que quase me esqueci da dor, e a propósito, ela detesta abóboras!
Um olhar de desaprovação da infanta não o fez corar, e ele continuou:
-Ela é mocinha inteligente e responsável, me cuidou direitinho quando esteve fora e acho que merece comer o que bem lhe apetecer!
Com a gargalhada de ambos a carranca da pequena se desfez; ela balançou afirmativamente a cabecinha cacheada, satisfeita com a defesa do novo amigo.
-Também acho que é moça feita e obediente; e merece repolho e batatas ao invés de abóbora!- Estendeu os braços queimados de sol para receber o corpo inquieto e o comprimiu ao ponto de fazer escapar um gemido divertido, ao pai de amor violento.
Quion arrancou do bolso uma boneca de palha e entregou para que a garotinha se afastasse e continuaram a conversa.
-A perna parece bem melhor e as crostas quase desapareceram. Eu tenho diminuído a concentração de pahije e pelo seu humor logo voltará a freqüentar lugares de má reputação!- Quion havia se debruçado sobre o resto de perna e levantou-se muito satisfeito.
- A botija d’água...
-Eu trouxe uma maior, cheia- Levantou-se para averiguar as traquinagens da filha e voltou com o recipiente e copo em mãos, despejou liquido até a metade e entregando ao enfermo foi sorvido em um gole só.
-Mais um pouco que o clima me secou até o tutano!- Bebeu o segundo mais calmamente e entregou o copo vazio para ser depositado ao chão.
-Gostaria de andar, a perna inteira já não me responde bem quando a ordeno e acabo de ter a impressão que logo terá que me contratar novamente o cirurgião para me amputar  a segunda por falta de uso!
Eles riram muito, mas a perna não susteve o peso e Dreh teve que ser carregado ao exterior do casebre.
-Nada de nuvens!
-Os poços de auxílio estão sendo escavados, mas não encontram nada acima de trinta braças, falei com Ohik; ele trabalha chefiando uma dessas equipes e me garantiu o empregar como assentador de pedras de calçamento ao redor dos mesmos...
-Não sei bem se quero trabalhar... Uma perna faltando me justifica bem como pedinte!
-Seu carisma o faria morrer de fome!
-Você fala com certeza de minha sinceridade!
-Como queira!
-Sendo assim- Dreh ergueu o queixo orgulhoso e fitou com desafio os olhos divertidos do amigo- Também te digo que, assim como Banira, estremeço a cada bocado da sua abóbora!
-Tudo bem, mas nada direi à Chantira; ela já o odeia o suficiente e você ainda não conseguiria lhe escapar quando lhe desforrasse com a mó do moinho!
-É um segredo que espero que guarde até que parta; sempre julguei que mesmo inteiro nunca seria páreo para aqueles braços fortes!
-O barulho de Banira silenciou- a voz soou como uma desculpa ao fim do dia, e ao entrar naquele espaço encontrou a cria recolhida ao canto mais quente, boneca pendendo dos dedos.
-As luzes se apagam mais cedo, azeite e gordura foram racionados e já ouvi histórias de violências e assaltos - Ergueu o pequeno corpo e com uns poucos passos já estava de volta ao exterior do casebre- Amanhã lhe prometo um desjejum que lhe compense a péssima refeição!
-Não... Não foi uma péssima refeição meu amigo, e...Cuidado com os cães...
-Boa noite, Dreh!
-Boa noite, Quion!

Continua...

Anderson Dias Cardoso.

quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pinóquio.

Cresceu, e se desenvolveu para ser construtor de impossíveis!
Escavou sucatas tecnológicas e ao longo dos anos montou corpo de fios, metais e transistores e cobriu com sintéticos e o deu aparência de homem.
Deu-lhe sensibilidade ao toque, percepção dos espaços e razão; tal qual a que possuíam os nascidos de carne; e um nome, mas agrilhoou-o à submissão amorosa e ele o acompanhava, devoto, à onde quer que fosse!
Apesar de incrível, a criança artificial foi mantida guardada como relação e nem um olho conheceu sua forma, ou ouvido ouviu suas súplicas.
Era açoitada pelos humores ruins do pai, e se o corpo era resistente, a alma se quebrava todos os dias.
Os muros altos da propriedade tentavam esconder os maus tratos, mas a voz gritada carregava longe as pragas, a ouvidos incomodados, e às vezes, solidários, mas o homem se provia de enlatados e cereais, para períodos tão longos que já quase não o viam, e se faltava contato, ou relação não havia quem ameaçasse denunciar, e a própria apatia e comodismo calavam por si muitas bocas!
-Desgraçado!!!Era o impropério dileto, e o som de metálicos se entrechocando seu acompanhamento! Um murmúrio respondia, e era silenciado por outras obcenidades antes que concluísse a queixa.
Era assim o dia inteiro...
Da loucura do homem agora diziam que as luzes foram apagadas de todo, e que uma vela caminhava, alumiando uns poucos passos a diante, e que se reduziram os gritos em favor de conversas nervosas e indecifráveis, aparentemente binárias.
Vez em quando alguém ousava saltar os portões tentando ver ou ouvir mais do que os boatos diziam, mas ao roçar de pés na grama se cerravam as cortinas e silenciavam-se todos os ruídos.
Após muitos dias tranqüilos gritavam novamente, e houve espancamento e humilhações até o cair da noite, hora em palavras, outra, em números.
Dia seguinte, e as vozes se alteavam novamente e todos os quebráveis eram consumidos pela ira que alguma vez parecera diminuída, e a briga persistiu até que ainda houvesse disposição, e o que se sucedeu naquele tempo ocorreu de novo, e de novo, até que a situação se tornasse absurda aos que acompanhavam as surras e ameaças.
Decidiram-se que a tutelar seria resolução menos cruel que deixar que o velho matasse a criança!
Quando a polícia arrombou a porta a casa os saudou com poeira e mau cheiro.
As poltronas haviam sido cobertas pelos tecidos orgânicos das aranhas; peças miúdas de mobília estavam nos cantos onde foram atiradas, e o mofo se aproveitava das infiltrações para colonizar e se expandir pelas superfícies abandonadas pelo cuidado.
A escada não mais subia, ou descia; e a luz sentia dificuldade em adentrar mais que uns poucos metros naquele ambiente de sombras fortes e pó revolto.
O lixo foi depositado rente às paredes em sacos gotejantes de sobras e detritos; algum pé esbarrou em um prato meio cheio de comida industrializada, e uma massa pulsante de larvas gordas.
O primeiro dos oficiais da tutelar se espantou, segurou o vômito, e brilhou sua lanterna para localizar algum movimento e se distrair do asco que sentia, notou o reluzir do seu facho em um corpo pouco humano e meio metálico, agarrado à uns poucos ossos grandes. 
Disseram que assumira o nome de seu pai, e ainda que fora criado como instrumento de afirmação conheceu o amor, e por fim, tornou-se uma imitação de vida tão fiel que não fosse a morte do criador, seria seu orgulho...

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 20 de novembro de 2011

Visita Íntima.

Quando os cheiros de pequi e frango lha acariciaram as narinas ela sorriu; um sorriso melancólico, espaçado demais de qualquer outro.
Provou o tempero, sentiu o açafrão tocar suave a língua e se lembrou de elogios e carícias e a saudade moveu algo no peito. Ela mandou que o sentimento aguardasse.
Lavou-se do suor e da gordura em água fria, esfregou com o resto de condicionador os cabelos escuros e quando se secou o corpo pediu uma gota de perfume para tornar sua simplicidade um pouco atraente.
O pano de prato atou a marmita com um nó arrochado, a garrafa de suco se assentou junto ao amarrado na rota bolsa e logo ela corria ao ponto, temerosa de perder a hora da condução.
Era magra, seus olhos pesavam de tristeza e sua pressa nunca a deixava ser percebida por quem a pudesse oferecer alguma compaixão, então seguia seus ciclos de trabalhos e visitas tão naturalmente como se seu fardo se tivesse incorporado à vida.
A viagem, apertada e quente, durou além de suas duas horas e meia.
O pátio-estacionamento do lugar se movimentava com uma torrente de outros sofridos em quanto o sol ofuscava e atiçava suas ansiedades com seu incômodo. A maioria ali era de mães e esposas de detentos.
E assim como em toda fila são compartilhadas vidas em conversas de oportunidade, naquela a afinidade de sofrimento trazia um pouco alento e empatia aos visitantes que se distraiam em reclamações e queixas.
Débora permaneceu silenciosa em todo percurso, e quando virou à direita no sólido e estreito corredor do complexo lhe apontaram um outro segmento.Quando sua mão empurrou a porta indicada se encontrou em um claustro.
Ela esperou.
-Dispa-se!- A voz não tinha tom identificável de sentimento algum, mas ela se assustou com a forma rude e agigantada do agente.
-A televisão disse que eu podia reivindicar uma agente...
-Isso aqui é a realidade dona- A voz intimidou, e a amedrontou por tamanha brutalidade e o corpo do homem se arqueou em sua direção ameaçadoramente- e nela só há uma agente para nem sei quantas mulheres!Tire logo essa maldita roupa se quer ver o desgraçado do seu marido!
Ela tentou outra reclamação, mas logo ele já estava junto ao corpo.
Tateou os ombros, correu as mãos pelos braços descarnados e ela fechou os olhos e murmurava uma oração de livramento.
As mãos lhe apalparam os seios dolorosamente- Estes filhos da puta desses repórteres gostam de moralizar a instituição, mas não sabem o inferno que é trabalhar por aqui- as mãos desceram às poucas curvas que possuía até o ventre; a mulher tremeu de asco e horror.
-Toda humilhação que passamos aqui, as condições ruins de trabalho e o perigo constante de lidar com essa raça de desgraçados...
A boca secou-se, e ela conteve ainda nas órbitas as lágrimas de vergonha.
-Pronto, senhora!Agora pode ir lá ver seu esposo- A voz voltara à monotonia anterior e ele deu um passo ao lado esperando que ela recolhesse suas vestes e saísse.
Antes que cerrasse a porta atrás de si ouviu-o elogiar o cheiro da comida- Você é uma boa mulher, não irei violar suas coisas...
Ao indicarem a cela de visitas íntimas ela terminou cabisbaixa o trajeto até chegar ao cômodo gradeado, de privacidade montada de lençóis e cobertores. Os carcereiros estipularam seu tempo, e ela entrou.
O leito era um armado de cimento e espumas amarelas saltando de seus forros, o cheiro de suor e mofo enjoavam-na o estômago.
Notou um pequeno dobrado sob a cama, apanhou-o, arranjou melhor o lençol e se sentou para ler.
Quando os olhos pontuaram a última linha, um, que não era seu marido adentrou a semi-tenda e ela entendeu o que devia fazer.
Seu marido não a encontraria daquela vez.
Ela abafou seus gemidos de asco, enquanto o homem alteava os seus, de prazer; como símbolo de posse e potência.
A droga consumida sempre era paga... Nem sempre em espécie...
O coito durou tanto quanto o valor da dívida, e quando o estranho a deixou ela ainda continha suas lágrimas.
-Pode entregar isto ao meu marido?- A palavra se desprendera da boca, mais dorida que nunca, e ela moveu o embrulhado ao homem.
Quando o aroma da comida se escapou dos intervalos da marmita e encheu todo o ambiente a carranca do homem se tornou em sorriso, e a língua saiu de sua toca, e varreu prazerosamente seus lábios, e enquanto deixava o lugar seus dedos já desatavam os nós...

Anderson Dias Cardoso.

quarta-feira, 16 de novembro de 2011

Frágeis Existências 8°Capítulo.

O arrastar de madeira foi o que o despertou; seu quarto pareceu vazio de mobília e em seu incômodo tentou movimentar o quadril. A perna esquerda subiu leve ao comando, mas a dor fechou seus  olhos e rangeu-lhe involuntariamente os dentes.
-Desculpe!Tiveram que a cortar para que não contaminasse o resto do corpo!-A voz soou tranqüila ao lado esquerdo do colchão de palha.
Dreh chorou tantos minutos quanto achou necessário para lamentar sua pena e apaziguar o mínimo de suas exaltações.
-Minha mobília... Alguém quer me despejar?
-Eu a tive que vender para pagar os custos da amputação.
Dreh sentiu fortes náuseas e, voltando se para sua direita o estômago tentou expulsar alguma substância, mas só lhe escapou dos lábios o hálito ruim e um gemido.
-Você só se alimentou de água durante o tempo em que passou inconsciente. Tive medo de que se engasgasse com a comida e acontecesse coisa ainda pior...O dinheiro só bastou para acertar a cirurgia.
-Tome, mastigue um pouco desta massa de cereais e seiva de Pahije, o fará se sentir alimentado e diminuirá as dores.
Esfregando as mãos na parte limpa do lençol Dreh se higienizou, e tomando entre os dedos um bocado da mistura notou que a seiva havia retirado todo o prazer do sabor e o substituiu por um gosto acre. Deglutiu o que havia entre os dentes e não quis provar outro tanto.
O anestésico era potente e logo as pálpebras pesaram e a dor o abandonou de quase todo.
-Ouvi dizer que se iria daqui...
-Ainda pretendo. Só espero que se recupere de todo.
-E suas terras?
-Ohik não as quis comprar; as venderei pelo que me ofereceu Dalu.
-Mas... foi declarado ilegal vender terras...-As palavras agora eram difíceis.
-Partir também foi proibido, e os anciões formam uma milícia, além dos construtores e reparadores de poços e valas de irrigação.
Devo partir logo, para que não haja quem o faça primeiro, e se endureçam as penas aos que o façam. Tenho mulher e filha, não as quero feridas.
-Em uma semana a perna estará melhor e poderei gozar de alguma independência, após isto você fica livre para partir e, como gratidão lhe comprarei os campos.
-Durma meu amigo, o remédio é forte e já o faz delirar!
-Mete a mão no forno de baixo, e encontrará minhas economias de taverna.
Quion riu-se gostoso, Dreh fez o mesmo, mas com boca torcida e dormente.
-Vá até o forno, seu estúpido!És um dos únicos à quem minha gratidão não me permite mentir!
O homem resolveu-se por não contrariar o doente e levantando-se foi até onde fora ordenado e meteu a mão às cinzas e sacou um amarrado médio de peles. Sacudiu-o e ouviu tilintar muitas moedas, então se riu da perspicácia do amigo.
-Então, por isso mendigava bebida nas tavernas!Guardava seu ordenado enquanto lhe pagavam as despesas!
-Não era à toa que me detestavam!
Ambos riram, e Quion deu passos rumo à porta. - Niad virá trazer algo para comer logo que acordar do efeito da seiva.
Dreh já dormia então.

Continua...
Anderson Dias Cardoso.

domingo, 13 de novembro de 2011

No Paredão.


Havia desmontado, engraxado e montado a peça como outras tantas vezes. A farda verde incomodava, como um sinal de ofício, mas ainda a mantinha limpa e as botas reluzentes para que não me denunciassem mais imundícias do que carregava em minha função.
Reuníamo-nos alguns minutos antes, num refeitório manchado de gordura e nos sufocávamos com este ingrediente volatizado em um ar denso, acrescido de fumaça de cigarros.
Falávamos muito de pornografia, e nos desrespeitávamos uns aos outros enquanto as cozinheiras nos azeitavam alguns pães e nos preparavam refrescos instantâneos.
Eles sempre vinham pouco adoçados; acho que era a vingança pela desordem que causávamos, e pelos palavrões que cuspíamos!
-Já é hora!- Ruan era a figura silenciosa que sempre  surgia de surpresa à porta e convidava-nos a nos lembrar à que estávamos naquele lugar.
Um apagou o “toco” de cigarro, outro engoliu o resto do líquido insosso e uma piada sobre prostitutas panamenhas foi terminada sem riso algum.
Andamos em fila para o pátio, e eu me enxergava como figura única e descontente e meus pensamentos falavam tão alto que vez ou outra notava uma olhadela do anterior, ou posterior, em minha direção.
Procurava às vezes sincronizar meus passos aos demais, isto me relaxava um pouco, mas a brevidade do corredor me levou depressa ao exterior,e me foi jorrada uma luz forte, de um dia limpo que me feriu os olhos de forma que me esqueci por um momento.
Nossa praxe era nos alinhar lado a lado, de costas para o “Paredão”.
Éramos supersticiosos quanto aos olhares dos condenados.
As armas foram verificadas novamente, os cartuchos postos e houve um disparo teste para que se evitasse o constrangimento de uma falha diante dos assistidores, e só então nos foi trazido o “morto”.
A pobre criatura se arrastou chorosa para a região central; nada me dizia de inocência ou culpa; e era apenas uma bala à ser disparada e outros afazeres menos desagradáveis seriam o alívio para toda aquela tensão.
Foi dado o comando e todos se posicionaram corretamente, outra palavra e as armas foram apontadas à um corpo que erguia pateticamente as mãos espalmadas como aparadoras do tiro.
Era um “dançarino” de segundos que seria morto por qualquer banalidade aumentada à importância de ameaça de Estado; uma discordância com obrigação de ser silenciada, no lugar onde a inerência da opinião era coisa relativa!
-Fogo!!!- Os estampidos dos tiros abafaram os gemidos, o ar se encheu de fumo e o corpo se deitou sob o peso da gravidade, sem muitos movimentos.
A piedade antecipou se ao tiro e minha arma voltava carregada ao quartel.
Ao menos daquela vez não quis ser responsável por uma morte.

Anderson Dias Cardoso.

quarta-feira, 9 de novembro de 2011

Frágeis Existências 7°Capítulo.

A aglomeração começou a se dispersar quando foram acesas as primeiras tochas, e seus passos eram miúdos, cadenciados por outros, cansados, que seguiam à frente ou por rodas de conversas que bloqueavam as charmosas e estreitas ruas que pulverizariam a multidão pelos bairros da cidade.
Andou pelo seu caminho notando um espaçamento maior entre as lâmpadas e a formação de cantos trevosos que engoliam os passantes que se adiantavam poucas braças à frente.
Os muitos que seguiam barulhentos pela Rua Direita já haviam se reduzido à uma quantidade desconfortável e de poucas palavras e a caminhada o levara um tempo e meio adiante, à região de construções públicas; ponto esvaziado pela convocação dos sábios.
A rua se alargou à medida que se aproximava do Paço e logo se tornou um espaço aberto; uma praça cheia de sombras e monumentos antropomórficos que pareciam querer descer de seus pedestais e entabular conversa, ou mesmo, ameaçar com seu bronze os insolentes notívagos que os perturbavam-lhes o descanso.
A caminhada se tornou mais cautelosa quando se distanciou do palácio e se viu próximo ao local de execução.
Lá um madeiro se erguia numa peça única, de madeira enegrecida e entalhada por orações e recomendações às almas que haviam de se utilizar de sua altura e um pedaço resistente de corda para saldar dívidas de Estado. 
Dre forçou uma corrida curta e deixou às suas costas aquele lugar desagradável, mas ainda não se sentia tranqüilo!
A noite brincou com seu nervosismo lhe soprando um dos raros ventos gelados daquela estação, e o gemido que ele trouxe consigo o fez virar o pescoço em todas as direções, procurando o dono do grito, e o enjôo retornou ao estômago, mas ele reteve o que lhe sobrava no ventre prendendo a respiração e estacando no local um instante.
-Devia haver alguém aqui!- Sussurrou temendo ser ouvido pelos espíritos, ou algum outro de seus pavores.
O vento veio outra vez e estalou a corda da forca e o corpo de Dre respondeu ao susto com um salto, e uma corrida desesperada à cata de alguma viela.
Parou quando já não havia oxigênio suficiente nos pulmões, arfou ali um instante e se pôs a andar novamente, procurando a direção de casa, mas a rua era mais escura ainda e por vezes ele teve que tatear as paredes do espaço estreito para encontrar possíveis caminhos.
Forçou os olhos para se localizar, mas a arquitetura era totalmente estranha aos seus sentidos, à não ser pelo cheiro desagradavelmente forte de fezes, e ele conteve os pés para não pisar em alguma poça de detritos, mas logo que pensou ver alguma luz sentiu fortes mandíbulas se fecharem em sua panturrilha!
-Aaahhhhhhhhhhh!- Caiu sobre a umidade imunda da rua, enquanto outras bocas mordiam lhe o dorso, os braços e tentavam alcançar o pescoço.
A mão retornou de sua busca com uma lasca de pedra, juntou forças e golpeou-os sentindo quebrar alguns ossos e no decorrer de seus movimentos lhe respingaram gotas espessas de sangue e a boca; provou o gosto viscoso, e ouviu alguns ganidos se afastando em corrida.
-Cães vadios!!!Estou sangrando muito!- Arrastou-se, tendo pesadas as pernas pela fraqueza do estômago vazio, e perda de sangue.
Despertou em dia claro com o barulho do movimento de curiosos; se endireitou e repeliu alguns olhares indiscretos com uma atitude animosa.
Lembrou-se dos ferimentos ao primeiro movimento dolorido. As mordidas eram de porte médio, e os ferimentos estavam enegrecidos e de bordas levemente avermelhadas, então espremeu o menos agravado e este cuspiu uma grande quantidade de pus; olhou ao redor e enxergou alguns dentes quebrados e manchas de sangue.
-Eram cães famintos... Eu...Eu não os culpo pela loucura que vem se estabelecendo nestas terras...-Se ergueu, muito dolorido, e partiu se escorando em paredes até que encontrou sua direção.
Chegou sem ajuda em sua casa, três tempos e um quarto depois de seu despertar e logo acendeu uma quantidade de carvão para ferver algumas ervas e preparar um emplastro, e uma das bocas do fogão à lenha deitou uma panela com grãos, e uma parte da fressura suína que havia salgado alguns dias antes.
O calor esquentou a serpentina e, temperando a água teve um banho agradável e lavou com cuidado os rasgos supurados, se secou bem e rasgou algumas camisas limpas para preparar algumas ataduras.
O caldo de vísceras e grãos cheirou bem no casebre, mas a febre e náuseas quase o impediram de prová-lo, então atou o preparado de ervas ao corpo, sorveu uma tigela rasa do engrossado e tentou recuperar-se no duro colchão de palha.
A porta foi esmurrada fortemente por umas tantas vezes, e ele se contorceu sob os lençóis e adormeceu profundamente.

Continua...
Anderson Dias Cardoso.

domingo, 6 de novembro de 2011

O Clube.

Os que procuravam por ambientes licenciosos encontraram um lugar chamado Babilônia; em um quarteirão isolado num bairro de que diziam ser no mínimo de má fama.
Os decotes e obscenidades das cercanias importavam menos agora, aos que por ali circulavam do que se contava dos ambientes do lugar; e a imaginação seqüestrava uns tantos da realidade de cheiros, sombras, sabores quase sempre amargos e cédulas amarrotadas destas ruas, levando cada mente às divisórias espaciais daquele prédio; à um mundo onírico e individual.
Cada parede continha uma pintura de cores sonhadas, e da mobília, os traçados condiziam com o conteúdo e formas desejadas em fidelidade proporcional à vontade e imaginação do cliente.
Poucos conheciam suas salas, e a construção do interior se dava aos boatos dos especuladores, ou clientes indiscretos que confessavam sua experiência à um próximo, e este se encarregava de quebrar sua promessa espalhando a um outro fiel, até que o assunto fosse comum a toda cidade:
-Pedem um avalista, não em bens, mas em sangue para que possa se entreter em suas salas e salões, e não se importam que o mesmo desconheça que sua vida dependa do silêncio daquele que se diverte na exclusividade do lugar...
-É um mundo sem proibições ou vergonhas, pois todos compartilham o obscuro de suas almas e se apóiam na realização dos desejos alheios, pois seus próprios não seriam aceitos sem o mesmo preço...
-Caminhões descarregam peças extravagantes à todo instante, vestes, símbolos, especiarias...
Alguns disseram ver sendo carregado um corpo vez em quando; às vezes trazido por policiais, e a fumaça densa das chaminés parecem soprar um cheiro de carne queimada às narinas, mas a diferença entre a quantidade de pessoas que entram e saem faz imaginar que os ternos manchados e amarrotados dos que disfarçam sua saída daqueles pátios e entrada nos carros luxuosos carrega mais culpa do que uma banal necrofagia...
-Disseram haver sacerdotes e clérigos de todas as religiões abençoando seus crimes, ou lhes remindo os pecados para que ainda que contaminados pelas transgressões alcancem um futuro no Paraíso, Campos Elíseos, Valhala ou qualquer lugar de descanso, por um bom preço, é claro...
-Não... Não é um lugar para ricos, todas alma podem oferecer alguma coisa; inclusive à si mesma...
-Sim... Lá o tempo passa ao seu gosto, e todos os sentidos se multiplicam e todo desejo é satisfeito...
-Alguns chamam luz, outros, escuridão, outros preferem chamar apenas luxúria, mas à maioria é um lugar a ser sentido, não nomeado...
-Muitos dizem que a cada associado se acrescenta um centímetro à construção, (que disseram ser orgânica!), e que sua expansão hipnotiza e absorve os circundantes com seu magnetismo e mistério, acredita se que a estrutura viva  logo cobrirá todo planeta, e conquistará toda alma que, viverá o dia escravizado pelo trabalho, e suas noites, pelos seus desejos...
-Já me ofereceram um convite, não tive coragem de visitá-la!

Andeson Dias Cardoso.

quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Frágeis Existências 6°Capítulo.

O tremor das mãos e o gosto ruim da boca; ou a noção dos mesmos, sumiram logo que o peso das cinco peças derramadas em suas mãos o fizeram notar a falta do valor integral de seus serviços.
-Se esta é minha carta de demissão ao menos esperava que fosse entregue pelo velho, e que acertasse o que me deve com a mesma honestidade com que se gaba nas feiras e mercados!
-E ai está seu salário, descontado as ausências e as lebres que furtou!- O sorriso de Bakur não foi uma ameaça, mas brilhou uma ironia que Dre quase chegava a apreciar.
-Bons patrões fazem vista grossa à essas insignificâncias!- Fechou as poucas peças em suas mãos e olhou com desdém para as terras às costas do gigante. - Ontem mesmo elogiei-lhe as filhas, louvando suas belezas enquanto bebia alguns canecos doados, mas agora...espero que não lhe sobre alguma em suas negociatas com o Estado.
-As terras do senhor Pudup foram entregues aos anciões, agora só lhe resta suas filhas, e esta é a minha tristeza em relação à você; o ver sendo demitido em condições tão penosas ao velho!
Dre piscou rápido os olhos, e sentiu ruborizar as faces.
-Ainda tem as filhas... A pena ainda não foi o suficiente para tamanha avareza...E ainda fico feliz em saber que está na mesma situação que eu, e que não serei mais despertado por seu hálito fétido!  
-Me empregarão no mercado, não fique tão feliz pela minha sorte, mas realmente sentirei falta de machucar alguns preguiçosos... Agora, se me dá licença preciso cobrar algumas dívidas do patrão...Devo aproveitar a investidura, enquanto ainda tenho e me divertir um pouco antes de passar a carregar fardos de cereais e carne seca.
-Por que tiraram as terras do velho Pudup?-Gritou Dre ao ver se afastar Bukur.
-Vá à Praça das Sombras para saber. - A frase foi dita sem que o grande homem se voltasse, num tom triste que contrastava com a rudeza daquele corpo.
À distância as copas altas e juntas formavam uma massa uniforme de cor verde escuro, e os caules iam surgindo e se entrelaçando nas encostas talhadas do palco semicircular. Eram construtos naturais e artificiais espantosos por seu porte, integrados como vista principal da praça.
As pedras de suas ruas eram as mais delicadas e bem polidas da cidade e seus caminhos formavam desenhos sinuosos e tranqüilos que subiam e desciam por níveis suaves, passando pelos outros paredões esculpidos, ou pelas árvores mais antigas.
O sistema de canalização, e as águas fartas do rio Saguf permitiram latrinas públicas, mas agora, com um ajuntamento que se ampliava até os limites da cobertura das árvores, e o enfraquecimento das correntes de todos os rios, um cheiro forte de urina incomodavam as narinas mais sensíveis.
-Já sabem dos assuntos dos anciões?- Dre seguia o curso das gentes procurando alguém que conhecesse mais que ele.
-Acho que diz respeito às migrações, ou coisa assim- Disse um senhor de barbas emaranhadas e salpicadas de alguma fruta muito madura.
-Só pode ser algum aumento nas contribuições- Uma mulher com poucos dentes, e muito sarro nestes puxou uma corda imaginária atada ao pescoço.
Haviam opiniões absurdas, outras nem tanto, então desistiu de perguntar e andou até que a massa humana estivesse bem compactada, daí afastava todos corpos possíveis com os cotovelos para chegar à distância onde o pronunciamento fosse decentemente audível.
Esperou um tempo e meio e as pernas formigavam, o estômago era só desconforto, e as muitas vozes se alteavam à medida que se demoravam os três velhos.
O corpo pesou sufocado pela compressão e calor dos outros corpos e ele procurou se escorar em algum ombro sólido, mas, recebendo olhadelas de desprezo tentou se afastar um pouco.
Suas entranhas se contorciam pela conjuntura de bebidas do dia anterior, emoções negativas e excesso de pessoas à sua volta e não segurando o que lhe subiu do estômago à garganta regurgitou um jato viscoso de cerveja e carnes defumadas semi-digeridas.
O alvo foi o vestido puído de uma senhorinha vincada de rugas e de extravagantes cabelos cor de laranja; ela tentou revidar o desaforo, enojadissíma, mas ao ver que cambaleava no breve espaço que o asco o proporcionou quase sentiu piedade. Deu os ombros e rumou para a casa lavar-se.
Algumas mãos o ampararam antes que tombasse sobre seus fluídos, e uma outra lhe entregou uma bolsa de água para que se refrescasse, ele tomou pequenos goles e despejou o resto do conteúdo sobre os cabelos ensebados.
-Quer que o leve para a casa?- Um homem cor de bronze envelhecido já havia metido o pescoço sob o braço direito de Dre, ele usava um grosso avental e cheirava à couro cru.
-Não! Eu preciso ouvir o motivo de minha demissão- Os olhos estavam embaciados pelo esforço do vômito.
Ele ainda se utilizava do amparo do estranho quando os três pequeninos homens foram vistos caminhando em passos curtos no palco de pelo menos oitenta braças de altura.
O pequeno do centro se vestia com as cores do trigo, das chuvas, e dos bosques e este era o Sábio do Pão.
À direita outro ostentava o branco, e o azul dos céus e era conhecido como Sábio dos Conselhos.
O terceiro vestia negro, mas um dia vestira branco e era o elo entre os deuses e os homens, seu nome era Ruguel, o Sábio dos Deuses, e agora era conhecido como “O Apóstata”.
Diziam serem os três gêmeos de três mães, mas não havia característica comum alguma além da barba longa que ostentavam e, após a queda dos deuses tais histórias não recebiam credito algum, mas eram estimados e exerciam poder real sobre toda a cidade dos quatro rios.
- Os campos das redondezas se secaram, e os chacais e aves de rapina nos cercam as entradas da cidade- disseram as três vozes em uníssono e com potência e gravidade suficiente para calar o burburinho- Mas nossos rios ainda correm vivos, e não fosse a tempestade haveria certeza de trigo à todas casas.
A vertigem partiu quando se concentrou naquela voz vinda dos três afluentes barbudos; Dre agradeceu o apoio e se firmou sobre sua própria força.
-Pessoas deixam suas fazendas e casas, vendendo-as por temor, a baixos preços à aproveitadores, deixando prejudicada toda a produção de grãos e ainda minando a confiança de seus irmãos...
-Outros arrendatários não põem seus estoques à venda e ainda negligenciam o acordo de preços, e inflacionam os valores aumentando os danos desta maldita seca...
-Alguns voltaram a invocar deuses que já havíamos deixado, por serem inúteis e desnecessários, mas nós vos dizemos que um de nossos cavaleiros voltou de passar por Gatak, e as cidades esvaziadas, e sua cavalgada foi acompanhada por nuvens pesadas de chuva!
Quando a frase foi pontuada os gritos se ergueram ao ápice da loucura, e todos os povos se abraçaram esperançosos, então os sábios esperaram a diminuição do êxtase para continuar o discurso.
-Com a chegada das chuvas mudaremos as estruturas desta terra para assegurar nossa existência e expansão para as regiões despovoadas.
-No momento aproveitaremos todos os que tiveram seus campos destruídos, todos desempregados por conta da seca, e mesmo, todos os ociosos e os empregaremos na construção de barragens e valas de irrigação, perfuração de poços, construção de celeiros, coleta de adubo e ainda os agricultores, para cultivarem as terras coletivas já que à partir de hoje receberemos de volta todas as que foram arrendadas para que haja pão em toda casa à preços justos.
-Também fica proibida a venda e mudança dos que possuem terras, e fica estabelecido o cultivo compulsório destas, da qual será tributada em seis décimos para distribuição aos carentes e reserva para caso de escassez.
Houve grande murmúrio, mas diante de uma quantidade enorme de desgraçados já irritados por fome e desemprego, aqueles de maior posse resolveram por se silenciarem por hora.
-Qualquer quebra das regras estabelecidas por este conselho deverá ser notificada à câmara, e cada levante será reprimido... É um período delicado e todos os traidores da terra e de nossos irmãos deverão ser punidos exemplarmente.
Os homenzinhos partiram como sombras, e pequenos focos de discussões nasceram aqui e ali e Dre se lembrou que um dia houve um quarto Sábio, que perdera sua função depois de encontrarem esta terra propícia e sua função foi extinta com sua morte, ele era o Sábio da Guerra, e ele era o pai de Ruguel.

Continua...
Anderson Dias Cardos.

domingo, 30 de outubro de 2011

O Pé de Frango.


Repulsivamente deitado ao chão o pé de frango engordurava alguns centímetros de asfalto à sua volta, certamente era figura desprezada de algum almoço ou mesa de boteco e jazia amarelo de açafrão no centro da rua.
Não haviam resíduos em volta, nem expectadores à vista e eu imaginava o frango amputado, e saboroso sendo repartido entre pratos, e mordido nos intervalos de risos e conversas enquanto a parte solitária se aquecia de sol, juntava pó e formigas e me embrulhava o estômago.
A força de sua imagem era respeitavelmente angustiosa; uma coisa destoante e absurda centralizada na passagem dos carros, com unhas agudas e um brilho oleoso e eu não conseguia deixá-lo e continuar meu percurso.
Naquele pé havia uma história e um par, mas era exatamente sua materialidade peculiar  e estranha por falta de vestígios comuns à sacolinhas de lixo em que provavelmente estivera contido que transformava sua presença  numa arte do absurdo.
É claro que o asco me prendia, estacado, fitando-o de cima para baixo ao menos enquanto não avistava qualquer passante, e eu já lhe imaginava odores repulsivos, e imaginava a fauna invisível que errava sob, e sobre aquele pé.
E eu olhei à minha volta, envergonhado de uma atitude demais estranha e, não notando alguém me rendi à minha curiosidade e o tomei em minhas mãos.
Os dedos se mancharam levemente de amarelo, e eu comprimi umas poucas formigas que o fazia de refeição.
O cheiro me alcançou as narinas, e os lábios provaram a carne magra e amarga.
Haviam sido dois dias de muita fome, e minha dignidade foi vencida então... 

Anderson Dias Cardoso.

quarta-feira, 26 de outubro de 2011

Frágeis Existências 5°Capítulo.

-Já circulo por entre cadeiras quase três tempos e o taverneiro e todos outros me negam uma caneca de cerveja depois de eu já ter gastado meu resto de ordenado, e ainda esperar as peças do fim da lua grande, e nada disso é por eu ser mal pagador! A antipatia devia conceder alguma cortesia ao menos!-Murmurou-Dreh-Moga escolhendo e se sentando num banco próximo ao balcão.
-Não me admira eu os desprezar tanto!-Sorriu cinicamente para si mesmo, enquanto verificava os bêbados adjacentes.
-Também o desprezo Dreh, mas lhe pago o que quiser só para ouvi-lo se lamuriar!-Disse o rosto que se encontrou com o seu ao se sentar.
-Sendo assim, se divertirá muito com este meu dia amargoso- Estendeu a mão o mais alto que pôde para chamar a atenção do ajudante, e gritou à plenos pulmões, se certificando que todos ouvissem que molharia a garganta mesmo sem ajuda dos mesmos.
-Filho do taverneiro, me traga uma caneca cheia que já estou para pagar à Puneb por sua “misericórdia”- A última palavra saiu cantada dos lábios torcidos de Dreh-Moga, mas rosto algum se virou para encarar sua pequena vitória.
-Acho até justo que os odeie tanto quanto eles o odeiam!-Puneb sorriu simpático, e deitou o caneco meio cheio à mesa.
A bebida chegou às mãos de Dreh e ele rodeou três vezes o recipiente antes de ter coragem de levar à boca.
-Não me lembro de ter tomado uma cerveja tão ruim! Aposto que urinaram na minha bebida, mas nem me importo muito com isso depois de um dia massacrante nos campos!
-Urinaram na minha também... -O sorriso saiu triste, e Puneb piscou pesadamente os olhos claros, sua única peça de beleza.
-Soube que Puneb mandou o grandalhão o despertar com algumas carícias!-O sorriso ganhou vida e se transformou em gargalhada.
-Qualquer que seja a história não foi a metade do que o contaram- Dreh enxugou o canto da boca nas mangas da camisa, e reprimiu um arroto tímido.
- Sua surra não me importa; mas a quantidade de lavoura queimada preocupa um pouco!
-Queimassem todas eu teria uns bons meses de descanso, e depois, o descanso eterno!He!He!He!
-As secas estão devorando as terras em derredor, e as profecias dizem destes desastres...
-Fosse um deus não veria o tempo de me vingar das blasfêmias deste povo! –Deu um gole longo e se aproveitou da proximidade do taverneiro para mandá-lo enchê-la novamente. Ele franziu o cenho e praguejou como de costume em uma altura em que nunca se podia entender bem o que dizia e tomou o objeto da mão.
-Não me faça desfeita, ou poderá perder um outro bêbado por maus tratos ao seu convidado!-Puneb não pôde conter o riso!
-Já me disseram que as viúvas andam fazendo libações em oferta para que os deuses se tornem propícios novamente!
-Há!Há!Há!Tratam as divindades como rameiras, das quais desprezam após a satisfação, mas logo as procuram atrair com pequenos valores quando sentem o desejo retornar ao corpo!Um absurdo, Puneb! Não que acredite em deuses, ou tais coisas, mas se existissem de fato, e fosse um deles reteria a chuva até que consumissem uns aos outros!
-Soube que as canções também estão voltando...
-As tradições orais não podem dizer mais nada!Transformaram-se em cantigas de escárnio para crianças, e já não se pode recuperar as regras dos deuses tão desvirtuadas que estão!
-Mas os cultos estão retornando, e logo os deuses da terra se erguerão para espremer as nuvens e nos dar uma colheita farta!
-Gosto de cerveja escura, vitela, uma boa noite de sono, e dos deuses nada mais se pode presumir e ainda assim, cada qual procura sacrificar ao seu gosto!Eles expulsaram os três deuses da terra em favor de novos deuses, e logo deram o mesmo fim aos demais, e agora escolhem presentes aos mesmos de acordo com seus próprios gostos e vontades! Fosse um deus eu daria estas terras aos porcos do mato!
-Mas nós os servimos de coração!
-Não entende que caso eles existam isso não teria nada à ver com sinceridade?
-Soube que uma matilha de lobos devorou a família de Jopeb quando partiram para além das cidades abandonadas!Havia uma criança enferma na comitiva...
-Acho que os lobos começaram a devorar aqui na cidade também!
-Diz do velho colecionador?-Puneb afastou a caneca em preferência à conversa. Superstições e fofocas não podiam ser bem Apreendidas com a cabeça em voltas.
-Espero que seus canários morram todos! Acho que eles são o máximo de apego do velho maldito, e serviriam para incomodar o malandro, em retribuição aos mortos trapaceados!
-Ouvi que nos campos de seu senhorio as coisas não andam muito bem!
-Os campos queimaram um pouco, mas ele ainda tem umas oito ou nove belas filhas para negociar em caso de uma colheita fraca!- Eles se riram da piada.
-Acredito que a “beleza” das donzelas filhas de Pudub não o assegurariam mais que um ou dois palmos de terra sadia!-Há!Há!Há!- A gargalhada de Puneb contagiou além de Dreh, um ou dois ébrios que prestavam atenção na conversa.
-Disseram que uma delas já foi confundida com uma mula mirrada, e quase lhe puseram arreio nos lombos magros!-O primeiro curioso invadiu o diálogo.
-Se carregarem um ou dois balaios de cereal valerão mais do que a piada estipulada!- O segundo se atreveu comentar.
As gargalhadas potentes dos quatro se multiplicaram por sua espontaneidade, e logo muitos se riam dos que riam, sem saber do conteúdo do que os fazia sorrir, e um pouco mais de cerveja encerrou a noite junto à outras maldosas anedotas.

Continua... 
Anderson Dias Cardoso.
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