E então o médico leu o ultra-som, e meu pai não se cabia mais, e ouviu aquilo que ansiava tanto:São gêmeos...e o coração foi à boca e a alegria saltou dentro do peito!!!Serão inseparáveis, serão os melhores amigos, terão a relação que sonhei um dia pra mim, sem diferença de idade, tudo em comum-Então o doutor abriu preguiçosamente os lábios e completou "inclusive os pulmões, os rins, e o fígado!E a alegria convulsionou ainda no peito e desmaiou"; "Como assim?" Foi só o que ele conseguiu dizer antes da negrura do desmaio e a rigidez do chão!Nossa criação foi tranquila, mamãe nos dizia "os mais belos gêmeos siameses", e papai, bem, ele ainda tentava se acostumar com aquela nossa proximidade; mas ainda assim o seu amor nunca nos faltou!Os problemas foram muitos, mas eu era o mais charmoso, e o mais inteligente e me saia bem, mas alguns não se resolviam sem concessões, como tatuagens em um corpo dividido, problema em graduações diferentes, de mentes diversas (eu era muito mais inteligente, e estava adiantado, e o dilema era qual das salas nos comportaria!), as direções da vida nos eram diferentes, as companhias, haviam problemas com a individualidade, mas enfim, aquela era uma sociedade indivisível...ou quase!!! Com dezoito anos optamos por uma emancipação, depois de muitas brigas e ameaças de morte, e nosso amor parecia ter se findado, assim como um poema que se corresponde em suas divisões e se completam, mas que terminam em um ponto; mas para ser sincero esse poema terminou com mais de 150 pontos, e um óbito!Meu irmão partiu, levou muitas lágrimas consigo, um pedaço maior do nosso fígado, um rim, e um pulmão, mas modestia a parte, a melhor parte dele ainda vive:EU!!!Letícia sorriu com o rosto cheio de vincos, de seus mais ou menos 72 anos: És um grande mentiroso!Divertidíssimo, tens o dom do entretenimento!!!-Ela moveu mais um peão, e suas mãos moveram para as minhas, e sentia o chão como algodão,e ela manteve aquele sorriso, que enternecia meu coração, com aquelas gengivas rosadas, saudáveis, e me admirei da honestidade da minha geração, que não vestiam dentaduras, e sorriam banguelas para a felicidade, sem preconceito, então, em ela me oferecer os lábios me portei como um cavalheiro e me despi de meus dentes, e ofereci o mais íntimo de meus beijos, sincero, sem artifícios de dentes fabricados, e deixei que ela sentisse a textura aveludada de minha boca, e sua língua brincou sapeca me causando cócegas nas gengivas, e ela se separou de mim extasiada, e seus olhos buscaram envergonhados o chão- Me desculpe, tenho de ir ao banheiro, me molhei toda! Me admirei por ainda despertar desejos mesmo aos 84 anos, eu sorria por dentro envaidecido então ela voltou recomposta-Desculpe me novamente, tenho que te confessar que tenho incontinência urinária...tive que trocar minha fralda geriátrica...! disse se acomodando diante do tabuleiro de xadrez e assim jogou meu sentimento viril por terra, e me senti mal, e a odiei, e movi minha peça em vingança, e gritei:"Coroe minha dama!!!" e ela desatou a rir e replicou toda irônica-Estamos jogando xadrez!!!Eu deixei correndo a cadeira, a associação de idosos e meu recém conquistado afeto, e correndo ainda desorientado pensei-"E eu ainda matei um irmão por ela..."
Anderson Dias Cardoso.