sábado, 16 de novembro de 2013

Um Resto De Mundo.


 A iluminação do lugar era quase tão precária quanto a das ruas; mas ao contrário da desculpa de esta ser parte dos edifícios móveis, com todas suas diversidades de lâmpadas e espaços mal preenchidos pela logística maluca de uma sociedade orgânica, naquele lugar a realidade é que a cada foco deixava de funcionar significava para o místico proprietário que se adiantavam mais alguns instantes na contagem para o Juízo Final!
 Quando adentrou o lugar, como de costume consultou quantos corpos ocupavam aquele espaço. Contou o máximo de vinte , todas agregadas em pequenos grupos barulhentos , e sendo levemente desfiguradas pelos golpes luminosos de uma repetida novela doutrinadora da TV Estatal e nuvens sufocantes de tabaco.
Cumprimentou os que conhecia, perdeu alguns minutos detalhando a um colega de setor de como um novato havia sido mutilado ao o encontrarem vendendo alguns gramas de ouro no mercado negro, e logo que também saudou uma dívida de uma garrafa de aguardente a outro conhecido pode procurar sua cadeira de hábito.
Verificou todos os parafusos e estes continuavam firmes. Não era bom arriscar ter alguma alça solta já que às vezes algum embriagado escapava às vistas para fazer uma visitinha desconcertante a “Sala de Máquinas”, acordando as engrenagens do imenso edifício para uma caminhada desastrosa...Sempre havia algum ferido nessas ocasiões!
Perguntou pelo proprietário, se lembrando que o relógio era seu inimigo, indicaram um fliper no qual desperdiçava outra ficha e o gritou para que o viesse atender logo. O velhote resmungou um pouco, puxou o fio da máquina para que ninguém se aproveitasse do seu gasto, se enfiou atrás do balcão ajeitando as dobras do avental, o qual escondia uma ameaça em forma de piada. Sorriu amistoso.
-Um destilado!
-Claro!
-Quer que coloque essência de limão corante e gelo?
-Não, descobri ontem que é cancerígeno!
-Chumbo no ar, mercúrio nas águas, amianto nos túneis, transgênicos, plásticos, DDT... Nós já estamos condenados há muito tempo meu amigo!Não me admira que o governo esteja mandando todo mundo pra virtualidade pra evitar que percebamos que somos uma população cancerosa!Toma aí seu “refresco”; e trouxe um pouco mais de gelo e um copo de água. Pelas marcas de suor da sua camisa acho que logo você vai precisar de um soro!
-O pessoal que trabalha comigo anda reclamando muito desses calores... Talvez o lote de ração tenha vindo com sódio demais novamente!

-Mas não se envergonhe, suor é uma coisa natural!Sinta o aroma desse lugar!-Esticou o pescoço vincado e fingiu aspirar o ambiente-Vômito, fumaça, mau-hálito!Eu vivo eu um paraíso sensorial, mas esses filtros aéreos não me permitem essas pequenas alegrias!-o velho sorriu divertido de si mesmo.
Gosto disso!Dessa maravilhosa degradação que anda espreitando por ai, e tomando conta de tudo, como aquela vagabunda ali, que voltou aqui mesmo depois de eu ter lhe pedido pra deixar meus fregueses em paz... -A frase foi dita em meio à uma corrida meio desajeitada e furiosa e finalizada com um ou dois empurrões, socos, chutes e cuspidas naquela mulherzinha estranha que procurava sentar-se no colo de outro esfarrapado que esvaziava um copo.
-Ele não gosta de prostitutas- esclareceu seu vizinho de copo enquanto se contorcia todo para que o corpo do homem lhe impedisse a visão.
-Olha que saí do serviço pra me embriagar um pouco e eis que sou surpreendido por essa luta de titãs!-Este era um bigodudo ruivo com o rosto todo marcados de crostas mal saradas.
-Se a mulher resolver revidar eu aposto nela!-disse gargalhando- E que não saiba que eu disse isso ou me cobrará a cortesia do gelo e água que me trouxe!- e a essa altura todos concorriam para ver o embate!
-Mas é claro que ela não fará nada!Ela precisa de grana pra se conectar, e, depois que o governo percebeu que substituir os “bagulhos” por esses tais implantes neurológicos que criam um mundo inteiro dentro da tua cabeça, quem ainda vai correr o risco de se contaminar com um sexo barato, e cheio de frescuras moralistas se você pode se deitar com qualquer atriz dessas novelas estatais, e tudo isso acontecendo aqui?- O bigodudo, único restante dos tantos que mantinham aquela conversa vestia um sorriso cariado e apontava a cabeça miúda e vermelha-A prostituição natural faliu, à não ser por alguns desses bêbados que ainda não tiveram coragem de financiar seu implante!Quanto a essa safada, amanhã ela volta pra tentar de novo e poder se conectar por uma ou duas horas!
-Acho que o governo devia parar de subsidiar esses viciados!Ele tem abrigo garantido, comida e até a higiene que dispensam, enquanto tenho que sangrar minhas mãos e deformar minha coluna num imenso buraco para extrair minérios que vão parar em algum lugar que nem bem sei onde...
-Éden, El Dourado ou até Marte... -Disse o homem aumentando a voz e apontando a pequena multidão que acompanhavam o velhinho, que neste instante arrastava, com muito custo o corpo de rosto ensangüentado da mulher, atirando-o porta afora e descendo as grades de cromo para impedir novas investidas.
-Ele parece exausto!Mas olha aquela pose vitoriosa!Ha!Ha!Ha!
-Espero que não apareçam policias aqui antes do toque!Ainda tenho uns doze minutos antes de passar num caminhão armazém e pegar o que preciso para o resto da noite... Meu estômago ainda dói de fome!Mas, voltando aos palpites de destino pra tudo que andamos produzir, continuo achando conversa fiada!
-Tudo hoje em dia é conversa fiada!Ou você acredita no que aquela dona ali na TV está dizendo a respeito da chegada de outra cidade móvel lá pras bandas da Angola!Daí eles vem com aquela conversinha fiada de como isso vai ser bom pra economia daquele lugar miserável, e que vão civilizar ainda mais aquele lugar, mas a gente que isso é o velho papinho de colonizador... Eles vão arrancar todas as árvores, vão roubar o resto do ouro e do diamante, e vão trocar tudo isso por um passaporte pro “país das maravilhas”!
-Sabe o que mais!Eu nem to preocupado com essa merda toda!Se os boatos tão dizendo que tão evacuando o planeta, e que os da elite tão vivendo aqui no “físico”, com todo luxo que a gente anda produzindo e nos pagando com uma moeda que no futuro vai matar a gente de câncer na cabeça, ou vai nos transformar num bando de esquizofrênicos...  
-Inclusive eu vou me levantar agora e vou pra meu cubículo alugado, fazer meu loguin e gozar de tudo que me custaria alguns milhões, pelo modesto preço de um cansativo dia de serviço!
Ambos se riram, ele pagou sua conta e partiu para o veículo armazém.



Anderson Dias Cardoso.
Continua...

domingo, 10 de novembro de 2013

Um Resto De Mundo.


Era certo que sempre dormia em suas viagens à superfície, e ainda assim o itinerário e toda a rotina do dia lhe era repetida por sonhos tediosos de sombras uniformizadas sendo desentranhadas das tocas de mineração pelo sinal sonoro de encerramento de expediente.
Continuavam  o ritual aqueles passos anestesiados a formarem filas intermináveis; de crianças à muito velhos, seres que teimavam em abanar as partículas de pó fino que se tornara íntimo do traje de ofício, e que era necessário deixar antes se despir e poder se amontoarem num dos diminutos espaços de estofado carcomido do transporte!
Sempre era tudo um pouco mais turbulento, e distorcido enquanto permanecia de olhos fechados, meio inconsciente, mas ainda assim quase não escapava da previsibilidade do dia à dia ao qual já vinha experimentando a alguns bons anos.Havia ainda os tais sangramentos nasais por conta da troca das máscaras de profundidade por filtros aéreos internos; incômodos de certo, mas ao menos não impedia a fala!
Quanto ao calor abafado de tantos corpos, este induzia a uma quase nudez geral, resultando em tentativas de todo tipo de promiscuidade sendo no entanto rechaçada por um ou dois monitores armado de borrachas que por vezes se faziam ouvir quebrando dedos e até braços!
Aquela subida, em particular, deve ter demorado as costumeiras duas horas ,tempo para que o corpo se acostumasse com uma variação de mais de quinhentos metros, e os recentes percalços com lamaceiros em determinados pontos, muito comuns nessa época do ano.
Despertou quando ouviu que a agitação denunciava a chegada na área de desembarque  e,ainda muito sonolento se viu sendo encaminhado aos galpões de averiguação, onde nenhum orifício era poupado da desconfiança de estar carregando qualquer minério ou pedra de valor.
Como rotinas, tudo era feito com tal indiferença e desprezo que as consciências se desligavam, mesmo que com corpos empurrados, beliscados,agredidos, humilhado, mas geral se reassumiam enquanto caminhavam para algum container de distribuição de suprimentos, ou, quando o toque de recolher os permitia visitar um vagão-bar para apreciar, mais do que a bebida, a companhia de uns últimos vagabundos alegres que ainda preferiam a nostálgica degradação alcoólica à “viagens de implantes”!
Como de costume empurrou umas dúzias de cansados que se afunilavam tentando alcançar a estreita porta única; a uns moveu, outros vestiam dimensões e pesos que estavam para além de suas forças; e enquanto se arrastava para seu descanso  olhava melancólico para as luzes que marcavam pontos naquela gigantesca cratera.
Comentou com voz fanhosa, de si para si que aquela garganta monstruosa ainda iria engolir ambas as cidades, a móvel e a de pedra, e foi surpreendido pelo olhar e resposta dum esqueleto baixo e calvo de que isso seria assim, já que haviam encontrado um “veio gordo” à uns oito quilômetros dali, e que alguma maquinaria já esta sendo deslocada pro lugar ainda naqueles dias. Tudo isso fora dito com muitos gestos, e indicações de um dedo sujo e atado por um nó de trapo que lhe servira de estanque para o corte.
Achando interessante o mexerico do homem resolveu perguntar que fim levariam as famílias assentadas, a curiosidade atraiu outra alma,e uma mulher raspada e de cor acrescentou que haviam boatos de que a polícia ameaçava e obrigava os cidadãos da periferia a assinarem sem reembolso suas “cartas de despejo”!
Nessa altura a conversa já não mais pertencia a aquele pequeno grupo e uma voz sem rosto lhe disse às costas que a TV Estatal desmentira tudo, outra brincou que bastava dar aos desabrigados (em sua grande maioria alienados) alguns créditos para gastarem em neuroestimulantes ou incursões em suas “particulares versões de um mundo melhor”, ainda outros concordavam que na verdade aquela região pertencia ao Estado, e que os tais miseráveis mereciam ser expulsos afinal, e outro dizia, e outro, e outro...Logo todos zumbiam suas vozes e procuravam se aproximar do epicentro de onde surgira o diálogo, e os comprimiam e sufocavam....
-Calem a boca!Tem um “borrachudo” ali...- alertou alguém sensato e naquele mesmo instante as vozes indignadas sumiram das bocas; cada qual já olhava disfarçando para uma direção oposta ao debate, mas a mão da mulher se estendeu, e apertou seus calos contra os dele tentando se manterem juntos até encontrarem a rua, mas isso não foi possível, e eles foram distanciados um do outro pela força do fluxo dos que deixavam o lugar, e não notaram um no outro que se separavam sorrindo.
A urgência e a agitação sempre aumentava  naqueles metros onde uma demagoga liberdade sorria seu simpático engano aos que deixariam o complexo, e era engraçadamente estranho se comparar com os gigantescos muros que guarneciam aquele locar.
Fora, uma centena de passos num lugar onde aquela massa turbulenta começava a se dispersar em suas caminhadas solitárias de regresso, caronas improvisadas ou uma demorada espera por transporte público e ele havia decidido se albergar naquela vizinhança, num lugar costumeiro onde se encontrava um vagão de rações bem próximo e haviam módulos com cubículos meio higienizados e ao menos um banheiro comum por esquina!
Vinte e três minutos de caminhada calma e visitava o relógio, calculando se haveria tempo para tomar um trago e completar seu percurso sem ser espancado, ter seus pertences confiscados e assinar outra advertência, que consistiria em mais uma indesejada dedução nos créditos salariais dos próximos dois meses.
Duvidou do perigo, dobrou outra esquina e procurou aquele bar itinerante de paredes encardidas, risadas estridentes e um agradável aroma de fumo natural!Naquela noite suas vistas não o divisaram de pronto, mas em seu lugar se encontrava uma lavanderia com selo ecológico estranhamente sinalizada por uma fachada em neon multicolorido!
Cidades de pedra eram sempre lugares mais agradáveis, mas como não se divertir com todo aquele improviso dinâmico de prédios inteiros que sumiam de onde deveriam estar e reapareciam só Deus sabe onde...Quando reapareciam!
Além da caminhada agora o estômago começava a incomodar, foi quando o som de algazarra foi se aproximando notou que os corriam pela penumbra eram crianças, daquelas descamisadas, a fazer festa  provavelmente por algum furto bem sucedido.
Se perguntou se suas mães não temiam a repreensão e cancelamento de seus benefícios pelo Estado, mas logo que avistou aquela tão conhecida porta de acrílico se esqueceu do que pensava.


Continua...
Anderson Dias Cardoso.
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