quarta-feira, 24 de agosto de 2011

O Nascimento De Um Pistoleiro.

O seu respeito custou uma bagatela de 72 vidas. Contratos bem cumpridos agregavam valor à cada morte, e logo precisava matar pouco para sobreviver dignamente.
Sofria com a bajulação dos temerosos, mas pesava cada amizade e relacionamento em moedas de ouro. Nenhuma delas valia muito.
Seu nome movimentava cidades, sendo possibilidade real de morte aos adultos, viuvez, ou ameaças à crias desobedientes.
Em suas visitas espantava por não causar espanto; suas roupas eram limpas, suas unhas e pelos sempre rentes e ele exalava bons perfumes. Vez ou outra fazia subir um arrepio com um olhar cruel, mas logo a fala mansa abrandava a ameaça e sua presença amena fazia esquecer sua reputação; até que uma bala precisa esvaziava um corpo e enchia um bolso.
Voltava-se após a queda, sorria para os que acudiam e deixava sempre uma bala não deflagrada à precisos seis passos. O souvenir marcava sua presença e intimidava, facilitando outros prováveis serviços.
Numa de suas sedes pediu cerveja e vinho, a primeira foi sorvida em um gole, o segundo foi derramado intencionalmente de seu copo fazendo desviar qualquer olhar curioso e dispersar alguns menos corajosos.
O Saloon havia sido escolhido por acolher um pretenso rival; um jovem talentoso, com algumas mortes importantes em sua breve carreira.
Os olhos se mantinham em seu aperitivo, movimentando o copo raso para diluir os resíduos da aguardente quinada, mimo importado da América do Sul para clientes potenciais.
Uma sombra o arrancou de suas distrações e ele pode ver um sujeito elegante se acomodar no banco ao lado.
O homem pediu outra cerveja e entabulou uma conversa que cheirava a álcool.
-Está aqui a serviço?
-Sim- Os olhos não se desviaram um instante de sua atividade.
-Soube que é dos bons.
-No entanto um estranho me aborda numa conversa... Minha fama não intimida o suficiente.
-Quantas mortes?
-12.
-Um bom número. Aposto que já me tomou algum serviço.
O moço ergueu pela primeira vez os olhos, e o homem estremeceu e continuou:
-Proponho um duelo!-A boca havia se secado e as palavras torturaram a garganta.
-Existem encomendas suficientes para dois.
-Considero sua resposta como pura covardia.
-As mortes têm um preço; quem pagará pela sua?
-Minha morte em sua caderneta duplicará seus rendimentos.
-Deixe-me terminar outra aguardente, ela me alegra o coração e torna meu ofício mais fácil! Peço que aceite também outra cerveja; cortesia de um irmão de profissão.
Ambos beberam, tomaram seus chapéus e sem encaminharam para a rua poeirenta. O alarde feito por todos os que corriam para presenciar o duelo fez crescer ainda mais o bolo dos curiosos.
Cada qual tomou o sentido inverso, e se viraram quando foram contados nove passos.
Inspecionaram suas armas, e as recolocaram no coldre e então alguém lançou uma moeda, e com o discreto baque da mesma as duas armas foram sacadas, mas um dedo se recusou apertar o gatilho e o corpo mais respeitado veio ao chão.
Os olhos do moço brilharam frios, a boca contorceu um sorriso de escárnio, ele deu outros seis passos e deixou um de seus cartuchos não deflagrados marcando o lugar; não entendeu que seu pai não havia lhe deixado um nome, deixou lhe uma reputação.

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 21 de agosto de 2011

O Restaurante Recorrente.


Um ambiente redundante, onde um grupo disposto se encontrava às quartas para reviver um dia de suas vidas indefinidamente.
Nasceu do acaso, e atraiu pelo nome toda sua freguesia, e cada qual se apegou ao seu espaço com ciúme, tornando restrito o acesso a outros que não os primeiros visitantes.
Nele a surpresa era proibida, e a ausência de uma pessoa significava quase sempre sua morte.
A segurança da rotina era o escape de uma vida imprevisível e atribulada.
Os pratos e escolhas se repetiam, mesmo com alguns excessos de especiarias, sabores desagradáveis ou escolhas equivocadas. Eram sagradas tais repetições, mesmo as falhas, e elas faziam parte do roteiro que fora despretensiosamente escrito um dia.
Traziam de casa os mesmos problemas, pensamentos e até indisposições orgânicas.
Um namoro foi reatado por mil vezes, um saleiro se quebrou e foi substituído tantas vezes, um garçom mal vestido grunhiu pela falta da gorjeta toda quarta...
Eles cumprimentavam, ou ignoravam-se de acordo com o dia da inauguração, seus rostos diziam sempre as mesmas coisas, e eram mudados em muito pouco por rugas, manchas senis ou cicatrizes e ferimentos dos dias comuns.
Apenas uma mesa variava em seu conteúdo e atendimento, e toda esta estrutura que destoava a rotina daquele espaço era situada à parte, com cozinha e garçom próprios.
Os frequentantes da mesa livre eram escolhidos, depois de propostos, pelos anfitriões para substituir algum companheiro morto, e observava sem interferir, e com muita liberdade até que se decidisse e começasse a se limitar e optassem por um dia para ser vivido eternamente.
Uma vez admitido, buscavam uma introdução pouco traumática ao grupo, com poucos diálogos e interações, e eles passavam a se reconhecer (mesmo que tivessem se visto por centenas de vezes), passavam a existir uns para os outros.
Tornava parte de seu dia comum, tão recorrente quanto todos vividos naquele lugar.
Então todos jantavam, bebiam e representavam perfeita e integralmente seus papéis restritos, e partiam para um mundo selvagem que os permitia correr riscos, exercer sua maldade ou bondade, sentir toda ansiedade possível e até morrer...
Mas toda quarta se viam trazidos àquele lugar por essa previsibilidade que apaziguava seus corações covardes.


Anderson Dias Cardoso.
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