A semana seguinte foi especialmente difícil; e acabei sendo
demitido por conta das faltas, já que gastava cada hora do dia diante do
monitor, esperando notícias e imaginando se não havia sido enganado, e o corpo
de minha mãe desovado em algum dos milhares de lixões regionais, ou se aqueles
profissionais eram mesmo gabaritados e conseguiriam lha transpor integralmente,
e sem seqüelas.
Finalmente a tela piscou um aviso, eu o abri, anotei o
código e fui esperar que houvesse algum transporte público que me levasse
àquele lugar.
Novamente haviam filas, a costumeira sujeira, restos de
embalagens e crianças chorando por todo o pavilhão. Uma organizadora tentava
gritar mais do que aquele tumulto, mas logo que se afastava do ponto em que solucionava
alguma querela, a baderna se restabelecia, e os oportunistas empurravam,
intimidavam e ludibriavam quem pudessem.
A espera durou oito horas, e me encaminharam para uma
salinha com uma tela nada modesta, do tipo que não se costumava a ver desde que
limitaram o consumo ao necessário tentando diminuir os resíduos, e eis que este
também me apresentava uma sala semelhante, com as mesmas medidas, objetos e uma
portinha branca trancada sempre pelo lado de fora.
Ela entrou, e parecia meio desconfiada. Trazia consigo um
bloco de papel.Puxou a cadeira acolchoada e se sentou.Seu aspecto era um pouco
melhor; a cor lhe havia retornado às bochechas e os olhos quase brilhavam.Me
estendeu a mão, e eu toquei a tela.
-Me... Me perdoa...
Ela baixou os olhos, parecia ter se entristecido
profundamente com minhas palavras. Abriu a papelada e escrevia alguma coisa.
-“Houveram alguns probleminhas, minha voz sumiu de vez, mas
eles dizem que foi apenas um trauma... Ela deve retornar em breve.”
-Eu não devia ter feito isto com a senhora...
-“Eu quero te mostrar uma coisa”. -E ela foi erguendo a
blusa, e mostrando o lugar onde deveria haver um ferimento.-“Você me curou!”
Eu não pude dizer nada; sentia-me confuso e culpado.
-“Aqui é um bom lugar, bem parecido com o que era antes do colapso.
Eles me deram uma casinha, mantiveram minhas pensões. Eu revi alguns amigos e
estou fazendo alguns outros...”
-“Eles disseram que este mundo está quase completo, e você
devia ver o céu daqui! Como é lindo, límpido e tão estrelado!”
Eu soluçava um choro contido, e me custava ler o que ela me
escrevia.
“Não chore! Eles nos disseram que logo quase todos vocês
estarão aqui conosco, e tudo será como antes...”-a mão começou a tremer a
escrita, e a mulher contorceu a boca e cacarejou algum som, antes que
explodisse em uma convulsão e espumasse a boca.
-Mãe?-O coração trotou no peito, e eu arranhava a tela,
enquanto via um grupo de homens invadirem a sala, arrastá-la aos berros
enquanto alguém tentar desligar o vídeo. Nunca mais a veria!
Saí possesso da sala, agarrei a moça da informação tentando
lhe obrigar a me responder o que havia acontecido com minha mãe. Ela se
desculpou aos berros e lágrimas, disse que nada sabia para dentro daquelas
portas.Eu a forcei com socos, nos olhos, na boca, no nariz, mas ela apenas
gritava e se debatia.Uma dúzia de outros funcionários vieram em socorro, e me
espancaram com a mesma severidade.Perdi a consciência várias vezes, e senti
muitos dentes nadando na boca; foi quando nos apareceu um engravatado e todo o
pessoal lhe indagava se deviam sumir
comigo, ou me entregar à polícia.
-Ele é só um maluco!Deixem-no ir cuidar das suas feridas. Nós
registraremos um boletim contra ele, alertaremos ao serviço social para lhe
diminuir as rações da família .Avise seu novo empregador para ficar de olho
nele!No mais ele não pode fazer nada!O cronograma de conversão conta com a
mídia, a política e o dinheiro para calar os discordantes.
-Vá embora vagabundo!Rosnou o maior deles, e bateu forte com
seu pé no chão. Eu me levantei de sobressalto,escorregando como um cão enxotado
um pique, para me distanciar de outra
surra, enquanto todos se riam de mim!
Contei à minha esposa, e ela também se indignou; então nos
propusermos a buscar discretamente por outras pessoas que houvessem sofrido
agravo semelhante, mas as poucas encontradas se sentiam receosas à princípio, e
passavam a nos evitar ao longo do tempo. Mudamos a estratégia e imprimimos
alguns panfletos, baseados em pesquisas e relatos, que encorajavam a desistir
daquela tecnologia, e os espalhávamos nas caixas de correio das vizinhanças,
tentando ao menos fomentar alguma discussão, mas a única pessoa à nos
manifestar solidariedade foi um vizinho amalucado que jurava ter tido seu cão
engolido por uma torradeira!
Uma noite nos foi deixado um bilhete dizendo que a paciência
havia de se acabar, e na semana seguinte os caminhões de entrega nos deixavam
uma ração de categoria muito inferior, à qual, em datas não muito remotas, haviam
suspeitas de terem sido cultivadas em solo contaminado por radiação. Trocamos
todos os objetos que possuíamos em casa por alimento,mas logo nos víamos
forçados a completar as calorias e vitaminas requeridas com aquilo que nos
forneciam!
À despeito de tudo isto, persistimos por mais ou menos uns
dois anos ainda; até o dia em que minha esposa defecou sangue, e os exames nos
confirmaram a metástase!
Nós fomos vencidos, zombados por toda vizinhança pela nossa
contradição!Cinco dias após requisitávamos nossos passaportes para a
virtualidade, e invocávamos a cláusula da “Letalidade Iminente” para nos
adiantarem na fila de espera!
De fato aquela era mesmo uma versão perfeita e saudável do
primeiro mundo; mas as pessoas pareciam mudadas!Ostentavam olhares ferozes,
falava com despeito umas às outras e até as formalidades e status
econômico-social, planejados desde o começo pareciam ser mantidos com extrema
dificuldade!Os novos peregrinos eram bem acolhidos somente, e quando, por suas famílias.
Quanto aos órfãos e deslocados, estes eram expulsos para as periferias e guetos
das cidades!
Eu e minha esposa fizemos uso do auxilio que o governo
oferecia aos recém chegados para sua adaptação psícossocial, até que tivessem
condições de serem readmitidos na cadeia produtiva e comunidade.
Isolamos-nos totalmente, e nos recordávamos e cogitávamos se
minha mãe estava certa quanto à alma, já que nós mesmos nos sentíamos meio
distantes e impessoais.
Acabado o período de ajuda não conseguimos nos integrar, e
minha esposa estava grávida de sete meses. Fomos sumariamente expulsos de
nossas casas, e vagueamos como esmolantes sob uma lona e outra, acompanhados
por uns outros tantos vagabundos descontentes.
Numa noite chuvosa ela sentiu as contrações, e corremos para
o esqueleto de hospital que se avizinhava. Pedimos permissão ao grupo que o
invadia, e fomos tropeçando em caídos até bem próximo do fogo!
A parteira improvisada cortou com faca de cozinha o cordão,
e a criaturinha contorcia seu inchaço em mãos lavadas com água de chuva. Era
linda!Perfeita...
Mas não se tratava de nada além de um pacote de dados!
Fim.
Anderson Dias Cardoso.