quarta-feira, 11 de novembro de 2015

Os Idiotas.



Super-heroína ordinária, daquelas de terceiro escalão. Poderes básicos, de personagens que serviriam de trampolim a outros mais interessantes, formas voluptuosas e aparência latina irresistível, não fugindo aos clichês das revistas de estória em quadrinhos  da década de 80/90.
A obsessão escolhia bem suas vítimas!
Jovem introvertido, família disfuncional, uma dislexia moderada que acabou o levando a optar por HQs, ao invés dos livros de literatura. Trabalhava duro, e poupava bem. Tudo corria naquela normalidade anormal de sempre, até aquela edição!
Ah!Pobre mancebo!Fora se enamorar logo por aqueles fragmentos esparsos de papel jornal!Nem mesmo era edição especial, daquelas com folhas de papel manteiga e capa holográfica e relevo!À despeito da maluquice, o que importava era ela, a tal “Esmagadora”!
Não se lembrava bem das estórias; talvez por conta de sua deficiência, que o deixava com entendimento dos balões pela metade, talvez pelo profundo desinteresse pelos outros "atores" daquelas peças... Mas eis que surgiu o “Capitão Martelo”, e logo o “Homem Volúvel”, posteriormente um tal “Homem Gás Mostarda” (se dizia “herói” do Vietnã); todos amantes de seu amor!
O convívio com o moço naqueles dias se tornara coisa tão difícil!Abandonou a casa dos pais, deixou de falar com os amigos e no serviço só respondia naquilo em que era requerido em sua função. A mente vagava entre os sentimentos de traição e o desejo de encontrar alguma forma de fazer com que aquela pouca vergonha cessasse.
Uma ideia lhe acometeu num daqueles dias angustiosos.
Duplicou a jornada, vendeu quase todos os móveis da quitinete alugada, sobrevivia de rações reduzidas e poupava ainda mais!Os pais faleceram num acidente, então, “afortunadamente”, herdou uma boa propriedade no centro da capital, além de um pedaço de terra no estado vizinho e algumas rezes gordas. As liquidou pelo melhor preço que conseguiu, e rumou para o escritório da editora.
-Gostaria de comprar os direitos da “Esmagadora”!- Declarou em voz alta, e tom decidido.
-Qual revista você representa, e por que quer a personagem?- Retrucou o responsável pelas negociações, não pouco curioso.
Tinha consciência que seria muito difícil explicar sua relação platônica com aquela garota de papel, então sacou um cheque gordo, o qual foi imediatamente consultado; e descreveu a insignificância daquela mulher para aquele universo, que chegava a nem figurar nas últimas oito edições. Suas razões não importavam, e era subentendido que se tratava de algum tipo de afeto de fã por um ser imaginário, como a tara de algumas pessoas por fadas e unicórnios.
Saiu pela porta com o termo de posse, e os bolsos vazios. O dia mais feliz de sua vida!
A história do moço, e a grande soma, acabaram por chamar a atenção de alguns curiosos. Intenções e hipóteses foram discutidas naqueles corredores, até vazarem de lá para as ruas, e das ruas para a rede.Logo todo o mundo tomava conhecimento!
O jovem, ciumento que era, havia perdoado os relacionamentos de Wanda Davis, real nome de “Esmagadora”, e convencera um ex-sacerdote, sósia do tal Stan Lee, a lhe celebrar o casamento pela bagatela de quatrocentos mangos.
A cerimônia foi modesta. Só ele, o totem da noiva e o religioso; no intervalo de uma missa, na qual o padre havia deixado com o diácono as chaves da igreja. É claro que isso lhe custou mais alguns trocados.
O relacionamento ia de vento em popa!O casal achou por bem manterem seus nomes de solteiro. À ela, isso lhe conservava a originalidade de sempre. Os problemas só começaram um tempo depois, quando algum engraçadinho que havia descoberto coisas sobre a bizarra relação, resolveu publicar um fanzine de conteúdo adulto com sua garota.
Ele se sentiu traído!
Tentou pelos meios judiciais, e conseguiu lhe barrar as publicações, ainda que amadoras e sem fins lucrativos; porém a solidariedade dos outros artistas acabou por fazer proliferar maldosamente a imagem e a fama da antes tão insignificante persona!
Àquela altura todos falavam sobre eles!
Estudiosos da nona arte, junto a entusiastas, começaram a desenterrar as edições estampadas com a mulher, e tentando entender o fascínio que exercia sobre aquele mancebo, a descobriram objeto complexo e poderoso! Os criadores da mesma afirmaram possuir alguns arquivos contando a história da heroína, apontamentos, lista de influências e esboços anteriores, a definição de como ela poderia ter sido...
Outro admirador foi identificado numa cidadezinha do interior, outro, no Estado vizinho... Logo eram mais de uma centena de confessos apaixonados.Enquanto isso, o universo cinematográfico havia acertado com o “dono da Esmagadora”, um longa, contando toda a história do casal!
A curiosidade, e o gosto pela bizarrice levaram milhões aos cinemas. A obra foi competente em realçar as qualidades da rapariga, e assanhar os ânimos dos espectadores com relação ao boato de que sua volta aos quadrinhos poderia estar sendo negociada para um futuro próximo. Da parte do dono dos direitos, nenhuma nota.
Então quitinete passou a ser alvo de peregrinação. Os fãs se manifestavam pelo direito de poderem ter acesso a novas aventuras de Esmagadora em todas as mídias. As vezes impediam o homem de sair de casa, o ameaçavam, suplicavam. Um mar de lágrimas lavava a calçada todos os dias, e brisas empesteadas pelo mau-hálito do pessoal que estacara em suas posições de protesto desde a madrugada do dia anterior, sem comer coisa alguma, incomodavam os manifestantes recém chegados. Alguém resolveu cortar-lhe o fio da energia, outro teve a ideia de fechar o registro do gás e água. Ele não teria opção, mas já haviam se passado oito dias, sem qualquer sinal que não o bruxulear de um toco de vela, e o discreto afastar de cortinas.
Quinze dias, e o homem pediu arrego.
Mandaram-lhe um negociador, e este saiu satisfeito, com a papelada assinada em mãos.
Alguns dias depois, estranhamente as revistinhas estavam nas bancas, tanto físicas quanto virtuais. Uma quadriologia fora prometida para ser entregue em alguns meses.Bonecos, bottons, canecas, chinelos, pelúcias, camisetas... Nunca um produto fizera tanto sucesso, e uma personagem assumira tamanha importância!
O rapaz havia evaporado, e ao pesquisarem sobre sua vida pregressa, se descobriu que sua história não havia sido bem do jeito que falavam por aí.
Rolavam burburinhos dizendo que aquilo não passara de um golpe, que o “doido” da conversa, e o pessoal da editora era agora quem riam às custas dos lucros daquela "paixão de fã" e daquele drama forjado!  




Anderson Dias Cardoso.


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