Super-heroína ordinária, daquelas de terceiro escalão. Poderes
básicos, de personagens que serviriam de trampolim a outros mais interessantes,
formas voluptuosas e aparência latina irresistível, não fugindo aos clichês das
revistas de estória em quadrinhos da
década de 80/90.
A obsessão escolhia bem suas vítimas!
Jovem introvertido, família disfuncional, uma dislexia
moderada que acabou o levando a optar por HQs, ao invés dos livros de literatura.
Trabalhava duro, e poupava bem. Tudo corria naquela normalidade anormal de
sempre, até aquela edição!
Ah!Pobre mancebo!Fora se enamorar logo por aqueles
fragmentos esparsos de papel jornal!Nem mesmo era edição especial, daquelas com
folhas de papel manteiga e capa holográfica e relevo!À despeito da maluquice, o
que importava era ela, a tal “Esmagadora”!
Não se lembrava bem das estórias; talvez por conta de sua
deficiência, que o deixava com entendimento dos balões pela metade, talvez pelo
profundo desinteresse pelos outros "atores" daquelas peças... Mas eis
que surgiu o “Capitão Martelo”, e logo o “Homem Volúvel”, posteriormente um tal
“Homem Gás Mostarda” (se dizia “herói” do Vietnã); todos amantes de seu amor!
O convívio com o moço naqueles dias se tornara coisa tão
difícil!Abandonou a casa dos pais, deixou de falar com os amigos e no serviço
só respondia naquilo em que era requerido em sua função. A mente vagava entre
os sentimentos de traição e o desejo de encontrar alguma forma de fazer com que
aquela pouca vergonha cessasse.
Uma ideia lhe acometeu num daqueles dias angustiosos.
Duplicou a jornada, vendeu quase todos os móveis da
quitinete alugada, sobrevivia de rações reduzidas e poupava ainda mais!Os pais
faleceram num acidente, então, “afortunadamente”, herdou uma boa propriedade no
centro da capital, além de um pedaço de terra no estado vizinho e algumas rezes
gordas. As liquidou pelo melhor preço que conseguiu, e rumou para o escritório
da editora.
-Gostaria de comprar os direitos da “Esmagadora”!- Declarou
em voz alta, e tom decidido.
-Qual revista você representa, e por que quer a personagem?-
Retrucou o responsável pelas negociações, não pouco curioso.
Tinha consciência que seria muito difícil explicar sua
relação platônica com aquela garota de papel, então sacou um cheque gordo, o
qual foi imediatamente consultado; e descreveu a insignificância daquela mulher
para aquele universo, que chegava a nem figurar nas últimas oito edições. Suas
razões não importavam, e era subentendido que se tratava de algum tipo de afeto
de fã por um ser imaginário, como a tara de algumas pessoas por fadas e
unicórnios.
Saiu pela porta com o termo de posse, e os bolsos vazios. O
dia mais feliz de sua vida!
A história do moço, e a grande soma, acabaram por chamar a
atenção de alguns curiosos. Intenções e hipóteses foram discutidas naqueles
corredores, até vazarem de lá para as ruas, e das ruas para a rede.Logo todo o
mundo tomava conhecimento!
O jovem, ciumento que era, havia perdoado os relacionamentos
de Wanda Davis, real nome de “Esmagadora”, e convencera um ex-sacerdote, sósia
do tal Stan Lee, a lhe celebrar o casamento pela bagatela de quatrocentos
mangos.
A cerimônia foi modesta. Só ele, o totem da noiva e o
religioso; no intervalo de uma missa, na qual o padre havia deixado com o
diácono as chaves da igreja. É claro que isso lhe custou mais alguns trocados.
O relacionamento ia de vento em popa!O casal achou por bem
manterem seus nomes de solteiro. À ela, isso lhe conservava a originalidade de
sempre. Os problemas só começaram um tempo depois, quando algum engraçadinho
que havia descoberto coisas sobre a bizarra relação, resolveu publicar um
fanzine de conteúdo adulto com sua garota.
Ele se sentiu traído!
Tentou pelos meios judiciais, e conseguiu lhe barrar as
publicações, ainda que amadoras e sem fins lucrativos; porém a solidariedade
dos outros artistas acabou por fazer proliferar maldosamente a imagem e a fama
da antes tão insignificante persona!
Àquela altura todos falavam sobre eles!
Estudiosos da nona arte, junto a entusiastas, começaram a
desenterrar as edições estampadas com a mulher, e tentando entender o fascínio
que exercia sobre aquele mancebo, a descobriram objeto complexo e poderoso! Os
criadores da mesma afirmaram possuir alguns arquivos contando a história da
heroína, apontamentos, lista de influências e esboços anteriores, a definição
de como ela poderia ter sido...
Outro admirador foi identificado numa cidadezinha do
interior, outro, no Estado vizinho... Logo eram mais de uma centena de
confessos apaixonados.Enquanto isso, o universo cinematográfico havia acertado
com o “dono da Esmagadora”, um longa, contando toda a história do casal!
A curiosidade, e o gosto pela bizarrice levaram milhões aos
cinemas. A obra foi competente em realçar as qualidades da rapariga, e assanhar
os ânimos dos espectadores com relação ao boato de que sua volta aos quadrinhos
poderia estar sendo negociada para um futuro próximo. Da parte do dono dos
direitos, nenhuma nota.
Então quitinete passou a ser alvo de peregrinação. Os fãs se
manifestavam pelo direito de poderem ter acesso a novas aventuras de Esmagadora
em todas as mídias. As vezes impediam o homem de sair de casa, o ameaçavam,
suplicavam. Um mar de lágrimas lavava a calçada todos os dias, e brisas
empesteadas pelo mau-hálito do pessoal que estacara em suas posições de protesto
desde a madrugada do dia anterior, sem comer coisa alguma, incomodavam os
manifestantes recém chegados. Alguém resolveu cortar-lhe o fio da energia,
outro teve a ideia de fechar o registro do gás e água. Ele não teria opção, mas
já haviam se passado oito dias, sem qualquer sinal que não o bruxulear de um
toco de vela, e o discreto afastar de cortinas.
Quinze dias, e o homem pediu arrego.
Mandaram-lhe um negociador, e este saiu satisfeito, com a
papelada assinada em mãos.
Alguns dias depois, estranhamente as revistinhas estavam nas
bancas, tanto físicas quanto virtuais. Uma quadriologia fora prometida para ser
entregue em alguns meses.Bonecos, bottons, canecas, chinelos, pelúcias,
camisetas... Nunca um produto fizera tanto sucesso, e uma personagem assumira
tamanha importância!
O rapaz havia evaporado, e ao pesquisarem sobre sua vida
pregressa, se descobriu que sua história não havia sido bem do jeito que
falavam por aí.
Rolavam burburinhos dizendo que aquilo não passara de um
golpe, que o “doido” da conversa, e o pessoal da editora era agora quem riam às
custas dos lucros daquela "paixão de fã" e daquele drama
forjado!
Anderson Dias Cardoso.
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