Cumprindo a parte que os cabia, propondo se ao trabalho social romântico que vez ou outra toca o coração dos homens se encaminharam às cercanias da cidade levando pasta, ataduras, anticépticos, dapsona... sua medicina para corpos semi-decompostos..
Avistaram a vila triste, a "Casa de Hansen" e o sorriso e conversa animada se obscureceram e quando adentraram na comunidade de farrapos humanos a sua saúde quase os envergonhou!Tanta podridão dorida... Terrores físicos e carências emocionais!
O marido adiantando-se rogou os que não se afastassem, e quando notaram receptividade seus passos convergiram esperançosos e alguns desses correram, mas pararam à costumeira distância.
O casal ia se apresentar, dizer de suas especialidades como hansenólogos, e as intenções de cuidá-los, mas as vozes os conduziram apressadas a uma emergência!
Num barraco úmido uma jovem mãe de mãos enfaixadas se contorcia na cama manchada de sangue e pus, e as contrações anunciavam a vinda de uma nova vida como um contraste de vida e morte.
A criança nascida, linda e perfeita foi espetáculo para uma dúzia de olhos, e esperada por outra centena fora do casebre, e sua beleza foi um breve esquecimento da feiúra da maldita doença.
Lavaram-na em água fria, ataram o umbigo, cobriram-na com uma toalha limpa que haviam trazido, e quando a criança foi entregue à mãe esta encolheu as mãos, que exibiam crostras, mas o amor brilhou em seus olhos então ela quis abraçar seu rebento; e o coração da médica doeu de ciúmes.
As mãos enfaixadas da mãe se deixaram entrever, e exibiam o aspecto um pouco repulsivo, mas eram passíveis de recuperação, então a médica reforçou a dobra do tecido e entregou a menina à mãe, fazendo recomendações de que não lhe tocasse a pele nua.
Nesse instante a médica escorregou os dedos sobre o ventre que recusou por tanto tempo em gerar, e esses mesmos dedos secaram uma lágrima que disfarçava a inveja em ternura... Ela olhou para seu esposo, e seus olhos negociaram a farsa, e ambos trocaram a caridosa missão pelo desejo de maternidade!
Eles disseram das péssimas condições sanitárias do local, convenceram a mãe do contágio certo da criança, e omitiram que antes do maldito sentimento lhes acometer estavam dispostos a tratá-la, deslocando-a para um lugar mais apropriado, e ainda cuidar dos daquela colônia.
A oferta de adoção foi feita, e considerando o bem da pequena tudo se resolveu com muitas lágrimas sentimentos de dor, gratidão, e contentamento!
Como sinal de muito boa vontade o casal tratou as mãos feridas, e as atou com novas faixas, esquecendo propositalmente o dapsona e outros medicamentos que reverteriam o entorpecimento nevral e tratariam os ferimentos evitando a perda de membros e órgãos. Se despediram, cumprimentados pela legião de mortos vivos pela sua bondade e ousadia diante da doença e da repulsa, e todos desejavam melhor sorte para a criança que agora escapava daquele destino.
Eles partiram e se esqueceram daquele lugar, chamaram a menina "Vitória", como tantas outras fugidas da morte e a boa criação que a deram lhes apaziguava o coração.
Anos depois o leprosário foi vendido a uma construtora para um empreendimento condominial após ser purgado; e os doentes se espalharam por toda a cidade, e em um passeio familiar a já adolescente Vitória depositou algumas moedas numa caneca de uma certa pedinte, e sua mãe, surpresa voltou alguns passos e fitou os olhos (agora cegos), e as mãos desprovidas de dedos e reconheceu a mãe de sua filha... Então a caneca soou com mais algumas moedas atiradas pela compaixão de Vitória, e a mulher sorriu um sorriso triste de agradecimento...
Anderson Dias Cardoso.