domingo, 27 de março de 2011

Caridade Torta.

Cumprindo a parte que os cabia, propondo se ao trabalho social romântico que vez ou outra toca o coração dos homens se encaminharam às cercanias da cidade levando pasta, ataduras, anticépticos, dapsona... sua medicina para corpos semi-decompostos..
Avistaram a vila triste, a "Casa de Hansen" e o sorriso e conversa animada se obscureceram e quando adentraram na comunidade de farrapos humanos a sua saúde quase os envergonhou!Tanta podridão dorida... Terrores físicos e carências emocionais!
O marido adiantando-se rogou os que não se afastassem, e quando notaram receptividade seus passos convergiram esperançosos e alguns desses correram, mas pararam à costumeira distância.
O casal ia se apresentar, dizer de suas especialidades como hansenólogos, e as intenções de cuidá-los, mas as vozes os conduziram apressadas a uma emergência!
Num barraco úmido uma jovem mãe de mãos enfaixadas se contorcia na cama manchada de sangue e pus, e as contrações anunciavam a vinda de uma nova vida como um contraste de vida e morte.
A criança nascida, linda e perfeita foi espetáculo para uma dúzia de olhos, e esperada por outra centena fora do casebre, e sua beleza foi um breve esquecimento da feiúra da maldita doença.
Lavaram-na em água fria, ataram o umbigo, cobriram-na com uma toalha limpa que haviam trazido, e quando a criança foi entregue à mãe esta encolheu as mãos, que exibiam crostras, mas o amor brilhou em seus olhos então ela quis abraçar seu rebento; e o coração da médica doeu de ciúmes.
As mãos enfaixadas da mãe se deixaram entrever, e exibiam o aspecto um pouco repulsivo, mas eram passíveis de  recuperação, então a médica reforçou a dobra do tecido e entregou a menina à mãe, fazendo recomendações de que não lhe tocasse a pele nua.
Nesse instante a médica escorregou os dedos sobre o ventre que recusou por tanto tempo em gerar, e esses mesmos dedos secaram uma lágrima que disfarçava a inveja em ternura... Ela olhou para seu esposo, e seus olhos negociaram a farsa, e ambos trocaram a caridosa missão pelo desejo de maternidade!
Eles disseram das péssimas condições sanitárias do local, convenceram a mãe do contágio certo da criança, e omitiram que antes do maldito sentimento lhes acometer  estavam dispostos a tratá-la, deslocando-a para um lugar mais apropriado, e ainda cuidar dos daquela colônia.
A oferta de adoção foi feita, e considerando o bem da pequena tudo se resolveu com muitas lágrimas sentimentos de dor, gratidão, e contentamento!
Como sinal de muito boa vontade o casal tratou as mãos feridas, e as atou com novas faixas, esquecendo propositalmente o dapsona e outros medicamentos que reverteriam o entorpecimento nevral e tratariam os ferimentos evitando a perda de membros e órgãos. Se despediram, cumprimentados pela legião de mortos vivos pela sua bondade e ousadia diante da doença e da repulsa, e todos desejavam melhor sorte para a criança que agora escapava daquele destino.
Eles partiram e se esqueceram daquele lugar, chamaram a menina "Vitória", como tantas outras fugidas da morte e a boa criação que a deram lhes apaziguava o coração.
Anos depois o leprosário foi vendido a uma construtora para um empreendimento condominial após ser purgado; e os doentes se espalharam por toda a cidade, e em um passeio familiar a já adolescente Vitória depositou algumas moedas numa caneca de uma certa pedinte, e sua mãe, surpresa voltou alguns passos e fitou os olhos (agora cegos), e as mãos desprovidas de dedos e reconheceu a mãe de sua filha... Então a  caneca soou com mais algumas moedas atiradas pela compaixão de Vitória, e a mulher sorriu um sorriso triste de agradecimento...

Anderson Dias Cardoso.

5 comentários:

Anônimo disse...

É, mas a vida cobra, não é mesmo?
Mesmo tendo conseguido o que queria, a médica jamais cocseguiu dormir por sua consciência pesada...
Um ótimo texto...
Smacks no coração.

Célia Ramos disse...

Que texto emocionante!
Nós humanos, temos uns sentimentos mesquinhos, às vezes! Somos capazes até de esquecer nossa missão, apenas para suprir nossas vontades mais secretas!
adoro seus textos!

OceanoAzul.Sonhos disse...

Excelente texto! Triste e tocante.

Abraço
OA.S

Vampira Dea disse...

Vc tem uma qualidade de escritor que eu acho incrível: Consegue mexer em feridas da hipocrisia humana com textos tocantes sem deixarem de ser belos. Me assusto com os desfechos. Hoje chorei, por mais uma vez ao perceber o quanto somos mesquinhos quando nos convém. Em menores ou maiores proporções mais somos. Outro e que lendo o teu texto relembrei um documentário sobre o sofrimento dessas pessoas até a metade do século passado, que eram arrancadas das suas casas e da companhia dos entes queridos para serem trancafiadas nesses depósitos de carnes para se decompor sem o direito a um mínimo de dignidade. Ainda bem que hj há cura.

Anônimo disse...

mais uma vez eu me surpreendo lendo seus textos derson, vec compõe imagens tocantes e sinceras.

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