quinta-feira, 7 de julho de 2011

Aluguel de Protesto.

Cercado de reclamações e inércia, e ainda sem emprego, resolveu-se por representar essa massa  de descontentes em troca de sustento, e notando sua pouca força e ainda, imbuído de sentimentos nobres recrutou uma multidão de também desempregados e anunciou em uma comunidade que dispunha de um grupo que representava qualquer causa em protesto, diante de qualquer injustiça.
Tímidos e desconfiados os primeiros clientes pagaram o quanto podiam por sua revolta, e lá estava o grupo tumultuando a porta da casa de mulheres traídas exigindo reparação, fechando escritórios devedores de funcionários, gritando palavras de ordem em frente à lojas que desrespeitavam seus consumidores...
Vergonha e intimidação eram terrivelmente eficazes, e encomendas dessa força passara a ser mercadoria procurada, e então a entidade passou à absorver novas porções de vadios e se dividiu em novas forças de enfrentamento.
Agora haviam vozes gritantes em toda  esquina, e a organização já havia se tornado incontível por qualquer força ou instituição, e sob o pulso forte do idealizador organizava sindicatos, contratava advogados e começava a comprar alguns deputados expressivos como garantia de continuidade e sucesso da empresa.
Logo o medo pacificou toda a cidade, e já sem “motivos” para se protestar as finanças decaíram, então começaram ondas de protestos extorsivos à qualquer pretexto.
A população já não via com simpatia aquela organização, e resolveu sair em defesa dos inocentes prejudicados, mas assim que a aglomeração alcançou a praça central foram cercados por viaturas, alvejados por balas de borracha e abatidos por jatos d’água.
Em meio à baderna aquele que um dia foi solicito às  queixas das mudas multidões, e solvedor de tantos problemas usava a voz que os emprestou por tantas vezes em uma empostação autoritária num megafone e apontava uma folha que o conferia o monopólio de qualquer manifestação, concedido pelo Estado.
Agora éramos protestantes ilegais.
  
Anderson Dias Cardoso.

domingo, 3 de julho de 2011

A Mudança.


Uma orgia de plásticos bolha e jornal e todos os móveis e objetos eram embalados para transporte.
Da boca da matrona partiam a maioria das reclamações, mas cada qual cuidava do que lhe era caro, afastando seus apegos das mãos dos carregadores, e entre sofás aveludados e vídeo game tudo foi se acomodando no fundo do baú, e ainda notando vagas e sob apelos sentimentais levaram peças dignas do lixo.
-Isso ou aquilo me trás recordações- e se agarravam aos dispensáveis e eles próprios os conduziam ao veículo.
Então, depois de seleções pautadas em sentimentos os “descartáveis descartados” foram arranjados de modo a facilitar a remoção e limpeza, e com olhadelas e suspiros já saudosos deixaram o imóvel cerrando o portão alto e ruidoso, já com sentimentos novos e felizes à respeito do novo destino.
Não houve cerimônia de despedida. Eram pessoas reservadas e em seus vizinhos não encontraram nenhum atrativo ou necessidade que os impulsionassem à comunicação.
Sua falta não foi notada, a não ser pela agitação canina no quintal.
No primeiro e segundo dias só houve silêncio, mas, notada a falta dos donos uivos doridos passaram a incomodar a vizinhança.
O coro choroso contava dois timbres, e tais timbres denotavam portes diferentes; muito grande e muito pequeno.
Vez ou outra o conjunto parecia se desfazer em uma briga barulhenta, mas logo se uniam em uníssono para invocar a presença de seus donos, e a cantoria durou uma semana e dois dias, até que um grande volume começou a chamar atenção se atirando contra o portão com todo restante de força. 
Notando o desespero finalmente se convenceram que já não havia moradores na casa e selecionado um; de espírito mais aventureiro, este trepou dificultosamente no muro alto e viu um corpo grande, porém magérrimo estendido próximo ao portão. Língua de fora, boca espumante e olhos revirados em suas órbitas.
Não muito longe encontrou o corpo descarnado e ossos meio roídos de um pequeno vira-lata.
As náuseas e a indignação foram regurgitadas dali mesmo, ele desceu do muro sem dizer palavra... Não havia mais vida naquela casa.

Anderson Dias Cardoso.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...