sábado, 13 de dezembro de 2014

Clichê.


Cheiro forte de cloro e urina. Corpo úmido, dolorido, boca seca, e um barulho enlouquecedor de música eletrônica gritada em altos decibéis.
Eu não me sinto bem!
A cabeça confusa, gira um pouco. O estômago coagido pelos odores não suporta, cede, e eu ainda deitado me vejo engasgando com o amargo da bile que vai à boca!Ouso abrir os olhos. O encerado amarelo, sujo e alagado por uma torneira aberta. Ambiente mal iluminado, exceto por alguns flashes do canhão de luz que acabam sendo refletidos pelos espelhos imundos. Há um pouco de névoa de gelo seco invadindo o local.Um pouco de sangue no chão!Meu Deus!Sangue!
Levanto-me, depressa, e desajeitadamente cambaleio para verificar no reflexo o quanto estou ferido.
A testa aberta, o sangue coagulado e um hematoma marcando o queixo. Devo estar desmaiado há um bom tempo.Apalpo os bolsos; todos eles, mas não há chaves, ou carteira!A memória não me fornece nada além das informações daquele instante!
Tenho que sair daqui!Essa música... Não consigo respirar direito...taquicardia.
Não sei onde estou... Será que...Espera; um papel dobrado logo ali!Deve ter caído do meu bolso.
O abro com cuidado, e ele está se desmanchando em minhas mãos. Contém alguns nomes, um só riscado, mas aquela não é minha caligrafia.Meu Deus!Alguém está atrás de mim!Não posso sair daqui!Meu Deus!Essa falta de ar, e. Parece que alguém está vindo para cá!Tenho que me esconder em algum lugar!
Me arrasto para o “cercado” mais próximo, cerro a porta sem trinco, e a mantenho com os pés apoiados para impedir que entrem. Mas isso não vai segurar ninguém!
Os passos se tornam mais altos. Minha respiração pesada pode ser ouvida a quilômetros.Meu coração está saltando a boca.Acho que estou enfartando!
Eles conversam lá fora, e eu não consigo entender direito o que dizem... Preciso me controlar!Eles certamente estão me procurando!Ah!Não!A música parou!Eles vão me descobrir... Estão falando de mim, da lista...Parece que bebi demais e sumi no meio da festa...Parece que alguém me viu meio tonto, escorregando numa poça de urina e batendo a cabeça na beirada da pia, e o cara ficou apavorado achando que eu havia morrido correu para pedir socorro...Como assim, eu sou um merda?
-Ahámm-hám- Fui descendo do vaso, dando descarga e saindo abotoando a calça, como se nada houvesse acontecido.
-Ué cara!Tá maluco!O pessoal tá te procurando por toda parte!
-É que a labirintite atacou, e eu acabei batendo a cabeça na pia. Mas eu to legal agora, se bem que parece que alguém limpou meus bolsos!
-A gente te leva pra casa, a festa perdeu um pouco da graça!
-Ok!-Esses caras fingindo aí que são meus amigos, mas me chamando de “merda” pelas costa...Se fosse como nos filmes isso deveria acabar de outro jeito, mas acho que sou um merda mesmo...




Anderson Dias Cardoso.

terça-feira, 9 de dezembro de 2014

Casas Mal-Assombradas.



Maldições, família residente assassinada por um psicopata que empurrava um carrinho de churros, vozes e luzes brilhando durante as noites marcadas nos calendários arcanos como agourentas, barulho de correntes, boatos de frases escritas em português errado num tom sanguíneo ralo de uma vítima que certamente sofria de anemia, portas batendo, canções entoadas por aquelas assustadoras vozes de crianças, sob um fundo de caixinha de música...
O lugar era muito visitado, e as histórias aterrorizantes, mas na chegada de alguém tudo acontecia ao contrário... ou melhor, nada acontecia!A casa empoeirada, o cheiro de mofo, o carnaval dos ratos, os véus estendidos das prendadas aranhas, mas fantasmas?Nada!
Ao menos aos olhos dos outros!
Eles estavam ali, quietinhos num canto, aborrecidos com mais aquela leva de curiosos barulhentos. As excursões se tornavam mais, ou menos freqüentes, de acordo com a publicidade de algum caso parecido, uma nova geração de crianças curiosas, ou alguma referência literária ressuscitado, repaginada, e plagiada.
-Será que eles ainda vão demorar muito?-Era a pergunta ansiosa repetida naquelas ocasiões.
Eles ficavam por ali, num canto escuro de sua própria casa, num silêncio aborrecido, sentindo comichões em seu ectoplasma. Vez em quando um grunhia, mas logo era repreendido pelos demais!A maioria organizada sempre se indispunha com a minoria bon-vivant/baderneira!Eles avisaram para não fazer barulho, para evitar a pirotecnia, para desenvolverem seu Mobral com aqueles restos de gesso, deixados numa ultima reforma, ao invés daquele efeitinho manjado de sangue, típicos das adaptações do livro do Stephen King, mas algumas almas preferiam brincadeiras escandalosas, e simulações de filmes de terror!Ninguém é perfeito, mesmo depois de morto!
Agora restava esperar aquela temporada passar. Se ficassem caladinhos por mais algumas semanas, acabariam por fazer o pessoal desacreditar dessa besteira de fantasmas, desestimular esse turismo invasivo, e encerrar esses clichês de estórias de casas assombradas.



Anderson Dias Cardoso.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2014

Sobre Modas e Mortes.


 Embora parido lá por meados de setenta e nove, seu nascimento social se deu mesmo uns dezoito anos depois. Não quando se emancipou, ou foi recrutado pelo “Tiro de Guerra” da cidadezinha ao lado, onde achou que teria sua dispensa garantida, ou mesmo quando ganhou alguns milhares de reais na loteria.Até então o garoto não passava de ente invisível, ou quase; pois o percebiam sempre que era necessário comprar alguma coisa na mercearia, pagar contas num banco ou lotérica, ou a ocasião pedia um palhaço involuntário para divertir a parentela!
A magia do reconhecimento se deu quando o garoto arrancava à espátula o corpo estropiado de seu gato “Oswaldo” do tecido asfáltico, levando o para seu bagunçado quartinho dos fundos, e o estofando com arame e palha numa habilidade tão grande que seus vizinhos mais chegados garantiam ser dom, ou milagre... Se bem que, naquela época o garoto não conhecia fornecedores de olhos de vidro, e os das bonecas da irmã não se encaixaram tão bem no animal, então a solução foi deixar assim como estava, com as órbitas vazias, como dois diminutos buracos negros. Logo a mãe se “arrepiou” com aquele bicho estranho, e, dentro de um saquinho preto de lixo, “expôs” aquela obra de arte na calçada de casa, e não soube se foi levada por gari, ou qualquer curioso.
Uma semana depois, seu segundo luto superado, e dezenas de propostas de encomenda o coagindo, decidiu-se que era aquilo mesmo que queria para sua vida!Pediu contas de seu emprego de repositor, usou seu acerto na compra de um freezer, dois manuais de taxidermia e um pouco de material para preparar suas primeiras encomendas!Trancou-se no quartinho, sob protestos da mãe, que até aquele momento não acreditava lá muito naquela loucura de se remendar bicho morto como modo de se ganhar a vida, mas aquilo foi só até o ver arrastar aquela versão muito melhorada do poodle da velha da casa n°256!
-Mas, nem parece...!-Exclamou a surpresa matriarca.
-Fazer o que, se o melhor que posso fazer acaba por melhorar a aparência dos “finados”?
-A mulher vai reclamar!
-Não acho!A morte sempre torna as pessoas melhores, o que se dirá dos animais!Aposto que a dona Maricota vai se gabar às amigas de o quanto esse bicho encardido era lindo, o quanto seu pêlo era sedoso... Eu só estou contribuindo para que a velha não minta tanto!Olha só que os arremates que fiz nem aparecem,  a postura na qual o armei dá até uma certa graça, e os olhos que comprei para a peça são tão convincentes que é quase impossível não concordar que estão vivos!
-Você é um dom de Deus!- Ele se lembraria daquelas palavras enquanto, em meio a soluços chorosos, compunha o corpo da mãe alguns anos depois.
O mais difícil naquela profissão era conseguir permissão judicial para empalhar pessoas, mas já havia feito alguns serviços para gente graúda da cidade; além daquilo meio que ter se tornado uma espécie de moda na cidadezinha, ao ponto de algumas pessoas, de tão maravilhadas com o resultado de alguma de suas “peças”, acabavam por tentar se adiantar em sua morte, só para parecer uma melhor vitrine do que a atual!
À essa altura já não trabalhava mais com animais, e à despeito de lhe proporem lecionar numa escola de artes em cidade vizinha ele ainda preferia sua privacidade, além de querer manter alguns segredos sobre sua profissão, a qual alguns creditavam à suposta magia negra que praticava, ou a um pacto com o capiroto, mas que se tratava de pura prática, observação e estudo!
Aprendera também um pouco de psicologia, para entender a vaidade humana, e solver qualquer problema de “falta de correspondência entre a pessoa real, e sua versão empalhada” a qual uma minoria criticava. Mas essas pessoas não entendiam que isso se tratava de arte!E que o que ele fazia era tornar o defunto naquilo em que ele gostaria de ter sido em vida, mas não o pôde, seja por falta de recursos enquanto era jovem, seja pelas deficiências da medicina plástica do momento, desleixo, ou mesmo medo das intervenções cirúrgicas.
Muitas pessoas já encomendavam também, com pagamento antecipado, sua “transmutação” (palavra quase mística, selecionada em uma caríssima consultoria de marketing de produtos a qual acabara por ajudar a elaborar vários bordões para seduzir ainda mais seus já tão encantados fregueses) em uma personagem histórica/cultural/pop.
Sendo assim, a vida seguia naquela agora tão célebre cidadezinha (alguns diziam que até o atual Papa havia passado por lá, e feito um orçamento para “um de seus cardeais”, mas, fora tais boatos, alguns artistas de renome apareciam mesmo, em fotos dependuradas nas ricas paredes da mansão do taxidermista, embora a maioria alegasse ter vindo por curiosidade! E, falando em fotografia, o costume passara a ser “endireitar” toda uma existência de registros de acordo com aparência do “morto melhorado”, e então não se existia mais a vergonha daquela esposinha feia, que falecera na flor da idade, após dois ou três partos que lha haviam contribuído um pouco mais para a decadência daquele não tão vistoso corpo; as mães permaneciam jovens para sempre, e aos homens lhes cabia demonstrar o viço e a virilidade que lhes faltara em vida!
Tanta glória, respeito e apreço!Embora tendo suas bizarras obras estudadas como uma nova forma de arte, e ter empalhado os principais figurões de sua época, depois de morrer foi enterrado em mausoléu de mármore, ao invés de se tornar objeto de exposição!Era homem muito orgulhoso, e não entregaria seu corpo para ser trabalhado por “profissionais menores”, como deixara registrado em seu codicilo!





Anderson Dias Cardoso.
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