Embora parido lá por
meados de setenta e nove, seu nascimento social se deu mesmo uns dezoito anos depois.
Não quando se emancipou, ou foi recrutado pelo “Tiro de Guerra” da cidadezinha
ao lado, onde achou que teria sua dispensa garantida, ou mesmo quando ganhou
alguns milhares de reais na loteria.Até então o garoto não passava de ente
invisível, ou quase; pois o percebiam sempre que era necessário comprar alguma
coisa na mercearia, pagar contas num banco ou lotérica, ou a ocasião pedia um
palhaço involuntário para divertir a parentela!
A magia do reconhecimento se deu quando o garoto arrancava à
espátula o corpo estropiado de seu gato “Oswaldo” do tecido asfáltico, levando
o para seu bagunçado quartinho dos fundos, e o estofando com arame e palha numa
habilidade tão grande que seus vizinhos mais chegados garantiam ser dom, ou milagre...
Se bem que, naquela época o garoto não conhecia fornecedores de olhos de vidro,
e os das bonecas da irmã não se encaixaram tão bem no animal, então a solução
foi deixar assim como estava, com as órbitas vazias, como dois diminutos
buracos negros. Logo a mãe se “arrepiou” com aquele bicho estranho, e, dentro
de um saquinho preto de lixo, “expôs” aquela obra de arte na calçada de casa, e
não soube se foi levada por gari, ou qualquer curioso.
Uma semana depois, seu segundo luto superado, e dezenas de
propostas de encomenda o coagindo, decidiu-se que era aquilo mesmo que queria
para sua vida!Pediu contas de seu emprego de repositor, usou seu acerto na
compra de um freezer, dois manuais de taxidermia e um pouco de material para
preparar suas primeiras encomendas!Trancou-se no quartinho, sob protestos da
mãe, que até aquele momento não acreditava lá muito naquela loucura de se
remendar bicho morto como modo de se ganhar a vida, mas aquilo foi só até o ver
arrastar aquela versão muito melhorada do poodle da velha da casa n°256!
-Mas, nem parece...!-Exclamou a surpresa matriarca.
-Fazer o que, se o melhor que posso fazer acaba por melhorar
a aparência dos “finados”?
-A mulher vai reclamar!
-Não acho!A morte sempre torna as pessoas melhores, o que se
dirá dos animais!Aposto que a dona Maricota vai se gabar às amigas de o quanto
esse bicho encardido era lindo, o quanto seu pêlo era sedoso... Eu só estou
contribuindo para que a velha não minta tanto!Olha só que os arremates que fiz nem
aparecem, a postura na qual o armei dá até uma certa graça, e os olhos que
comprei para a peça são tão convincentes que é quase impossível não concordar
que estão vivos!
-Você é um dom de Deus!- Ele se lembraria daquelas palavras
enquanto, em meio a soluços chorosos, compunha o corpo da mãe alguns anos
depois.
O mais difícil naquela profissão era conseguir permissão
judicial para empalhar pessoas, mas já havia feito alguns serviços para gente
graúda da cidade; além daquilo meio que ter se tornado uma espécie de moda na
cidadezinha, ao ponto de algumas pessoas, de tão maravilhadas com o resultado
de alguma de suas “peças”, acabavam por tentar se adiantar em sua morte, só
para parecer uma melhor vitrine do que a atual!
À essa altura já não trabalhava mais com animais, e à
despeito de lhe proporem lecionar numa escola de artes em cidade vizinha ele
ainda preferia sua privacidade, além de querer manter alguns segredos sobre sua
profissão, a qual alguns creditavam à suposta magia negra que praticava, ou a
um pacto com o capiroto, mas que se tratava de pura prática, observação e
estudo!
Aprendera também um pouco de psicologia, para entender a
vaidade humana, e solver qualquer problema de “falta de correspondência entre a
pessoa real, e sua versão empalhada” a qual uma minoria criticava. Mas essas
pessoas não entendiam que isso se tratava de arte!E que o que ele fazia era
tornar o defunto naquilo em que ele gostaria de ter sido em vida, mas não o
pôde, seja por falta de recursos enquanto era jovem, seja pelas deficiências da
medicina plástica do momento, desleixo, ou mesmo medo das intervenções
cirúrgicas.
Muitas pessoas já encomendavam também, com pagamento
antecipado, sua “transmutação” (palavra quase mística, selecionada em uma caríssima
consultoria de marketing de produtos a qual acabara por ajudar a elaborar
vários bordões para seduzir ainda mais seus já tão encantados fregueses) em uma
personagem histórica/cultural/pop.
Sendo assim, a vida seguia naquela agora tão célebre
cidadezinha (alguns diziam que até o atual Papa havia passado por lá, e feito
um orçamento para “um de seus cardeais”, mas, fora tais boatos, alguns artistas
de renome apareciam mesmo, em fotos dependuradas nas ricas paredes da mansão do
taxidermista, embora a maioria alegasse ter vindo por curiosidade! E, falando em
fotografia, o costume passara a ser “endireitar” toda uma existência de
registros de acordo com aparência do “morto melhorado”, e então não se existia
mais a vergonha daquela esposinha feia, que falecera na flor da idade, após
dois ou três partos que lha haviam contribuído um pouco mais para a decadência daquele
não tão vistoso corpo; as mães permaneciam jovens para sempre, e aos homens
lhes cabia demonstrar o viço e a virilidade que lhes faltara em vida!
Tanta glória, respeito e apreço!Embora tendo suas bizarras
obras estudadas como uma nova forma de arte, e ter empalhado os principais
figurões de sua época, depois de morrer foi enterrado em mausoléu de mármore,
ao invés de se tornar objeto de exposição!Era homem muito orgulhoso, e não
entregaria seu corpo para ser trabalhado por “profissionais menores”, como
deixara registrado em seu codicilo!
Anderson Dias Cardoso.
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