Havia dobrado a esquina, deixando para trás a última
tentativa de relacionamento. Garota simpática, inteligente, sorriso tímido e de
dentes tão brancos quais nunca havia visto.O hálito era agradável, o beijo,
delicado; ainda que nada lhe despertasse de simpatia ou libido.
Assim foi com algumas outras...
Passeava naquele dia, somente isso. O peito vazio ainda
incomodava, mas sabia que nunca o completaria de maneira convencional, e além
disto, havia poupado muito por suspeitar que um dia haveria de querer a
solidão. A mãe, único afeto, fora levada por uma epidemia de tuberculose em 54,
e, de lá prá cá todo relacionamento foi instintivo, lógico e interessado; coisa
de sobrevivência!
Um quarteirão, outro, e outro. Os pés reclamavam muito; talvez
sangrassem, mas sentia-se impulsionado a vagabundear até a exaustão.Não havia
mais emprego, responsabilidade ou amigos que lhe ocupassem; então, continuou.
Não podia precisar onde se encontrava à meia noite. A boca
secara, e já nem sentira o resto do corpo tamanho era o cansaço.As casas daquela
vila lhe eram de alguma forma familiares, e a sensação da terra fina e solta raspando
e cobrindo o envernizado recém comprado o angustiaram muito.Não era cuidado com
a aquisição, mas um sentimento nostálgico que lhe invadira uma ou duas vezes na
vida; então parou na encruzilhada, olhou demoradamente o conjunto até que
quando ia se virar ouviu o choro.
O negrinho não estava tão distante, e ele não se importava;
mas a curiosidade o arrastou para junto.
Ajoelhou-se perto do corpo miúdo, tentou falar alguma coisa
para que este se virasse, mas se sentia desajeitado. Tocou o braço, e o
rostinho vestia olhos inchados de choro, e um ranho que escorria até o peito,
fazendo lodo com o pó da rua.Perguntou pela mãe, e ela o havia posto para fora
de casa “prá namorar”.Aquilo o incomodou.Perguntou se acontecia com freqüência
e o garoto respondeu que à cada dia, com
namorados diferentes; daí já não conseguia mais fitar aqueles olhos, inda assim
o tomou no colo e o levou dali.
Uma semana, duas, e nada de veicularem o sumiço da criança. Esta
havia ganhado peso, e tagarelava pela casa dia inteiro, à despeito de ele o
ignorar quase sempre.Aquela identificação a qual o levara a abrigar em sua casa
sumira quase que completamente, e ele agora era com qualquer pet, o qual se
deve alimentar, higienizar, vermifugar, levar para dar uma volta.Tarefas que
desempenhava tão desapaixonadamente quanto antes.
Dia chuvoso, sem passeio e a “manha” do garoto se manifestou
em gritos, uns copos quebrados, arranhões e algumas palmadas. Abafou bem aquele
rebuliço pois temia que os vizinhos o notassem,investigassem, pensassem mal,
chamassem a polícia...Prometeu que sairiam no dia seguinte se lhe obedecesse; o
garoto disse alguma coisa mas ele já havia se virado para ir terminar de lavar
as louças do almoço.
-Sua mãe também era uma prostituta!
-O que disse?- a surpresa lhe socou o estômago.
-Ah!Agora me ouve?-zombou o garoto.
-O que sabe sobre a minha vida, seu fedelho!?
-Te vi chorando e falando enquanto dormia.
Os olhos do homem se estreitaram, espalmou a mão e acertou
com vontade o pequenino; este chorou por uns minutos enquanto ia se recolhendo
ao quarto improvisado.
-Te ponho na rua, moleque!-Gritou, e esperou que lhe
respondesse de alguma forma e o justificasse no que pretendia fazer, mas nada
ocorreu além de pesadelos e impressão de ser observado enquanto dormia. Levantou-se
algumas vezes para verificar se a porta estava realmente trancada, e se havia
coberto o buraco da fechadura.
No dia seguinte sentiu remorso, e algo parecido ao medo, mas
o levou em passeio, ainda que não ousasse trocar uma palavra!
No percurso do parque o garoto apontou um ou dois
conhecidos, e ele inicialmente pensou que falava de pessoas de seu próprio convívio,
mas notou com estranhamento que ele o fazia descrevendo o papel destes na vida dele.
Passou a prestar atenção a tudo que dizia, mas havia temor de perguntar alguma
coisa.
Às vezes deixava o garoto se afastar, e brincar de “faz de
conta” com algum amigo imaginário, mas este o perturbava inserindo coisas que
havia pensado, ou vivenciado naquele dia, as quais quase sempre enquanto estava
sozinho.
Tentou se afastar daquela criatura!Recuava passo à passo
para que não notasse que se distanciava, mas logo que estava pronto a se virar,
e sumir, o garoto correu e lhe chamou de pai. Ele se sentiu coagido pela
quantidade de pessoas que lhe fitaram quando gritão “Não”, e acabou por o receber
em um abraço dissimulado, e levá-lo para casa.
A criança agora estava mais estranha do que nunca. A sala
parecia povoada de amigos imaginários, e o garoto já não comia ou dormia , além
de descrever, de modo lúdico e surreal a vida inteira de ambos.
E a vozinha foi se alteando, inundando ,sufocando,
angustiando o homem ao ponto deste correr da porta às escadarias, e destas às
ruas sem ao menos se aperceber disto!
Ele flutuava sob o calor do dia, olhando para lado e outro temendo
ser encontrado em meio àquele coral de vozes e sentimentos. Perambulou uma
semana inteira, ou teria sido um mês?A criança surgia vez em quando, em alguma
esquina ou encruzilhada, e ele tentava fugir; pelas pernas, medicamentos, bebida...
A criança sempre o encontrava!
Outro dia quente, e os olhos pesados pelas noites insones
criavam alguns delírios desconcertantes. Ele tinha certeza que estava ali, em
pé; saído de uma loja de camping a qual lhe havia tomado todo dinheiro em troca
de um 32 usado com código de identificação raspado.Se reconhecia como uma
figura estrapeada pelo reflexo sujo da vitrine, e imaginou como seu hálito e
cheiro agrediam os circundantes.Abriu o embrulho, e olhou ali mesmo arma e
balas, recarregando calmamente o tambor enquanto as pessoas iam se afastando e
se desviando de si.A criança também estava ali!Naquele dia havia lhe dito o
quanto sua mãe o desprezara!O lembrou que, após o fim do casamento, ela tentara
alguns relacionamentos honestos os quais serviriam para, no mínimo, os manter,
os quais seus ciúmes, gritos e ameaças, afastaram cada um! Foram então
despejados; mendigaram por algum tempo, e a mulher passara inicialmente a o
ignorar, posteriormente o maltratava com xingamentos e golpes, na tentativa de
que fosse embora. Um senhor, certo dia, lhe perguntou se ela não queria lhe
alugar o corpo.Ela foi, e voltou de banho tomado, cigarros e alguma
comida.Daquele dia em diante se mudaram para um quarto, barraco e casa decente;
mas nunca sem algum tumultuo por conta dos fregueses e os cuidados do garoto!O
negrinho o lembrou que fora oferecido à algumas famílias; sendo rejeitado pela
cor e idade, então a mulher pagava mensalidade à quem lhe acolhesse, dizendo
que ainda poderiam se servir dele em atividades domésticas pertinentes às suas capacidades.
Um ano depois não haviam mais pagamentos, ou mesmo notícia da mãe até ter
descoberto seu falecimento, muito tempo depois; e ele foi expulso e acolhido
por desprezo e piedade em muitas casas; mas os afetos e gratidões haviam sido
dispersos entre uma mudança e outra!
E estavam ambos ali, no presente. Olho no olho.O negrinho
sorria, ele não.Havia ouvido daquela criaturinha asquerosa tudo o que não se
lembrava, ou queria saber de si.Então o “infamezinho” avançou mais um passo,
tomou a arma na mão e disse:
-Eu sei que você não tem coragem!Sempre foi um covarde,
então deixa terminar isso prá você, meu amigo!
O garoto apontou para sua própria cabeça, com aquele mesmo
sorriso, e disparou; mas foi o corpo do homem quem caiu!
Anderson Dias Cardoso.