...- como te
disse, foram três abortos, acho. Tá tudo escrito na ficha que me deram pra
preencher!Uma consulta tão cara e você nem se deu ao trabalho de ler a maldita
ficha?
-Senhora, eu
trabalho com um sistema de atendimento humanizado, e estou conferindo as
informações solicitadas no prontuário para verificar se houve algum equívoco, omissão,
ou mesmo se a senhora gostaria de acrescentar algo, como informações de
ascendentes, que nos auxiliariam a detectar algum possível defeito congênito. Queira
se acalmar, ou terei que chamar seu marido para a retirar, e acho que isso o
aborreceria bastante!
-Mas... Mas o
senhor não pode fazer isso comigo!Meu marido é o prefeito, e estamos acertando
com o partido a candidatura ao governo do Estado!
-Sim. E se eu
tornar público essa maluquice toda a qual estamos tratando aqui, no máximo
volta a ser um vereador na cidadezinha obscura onde nasceu!
-Você não
pode fazer isso!É juramentado, e além do mais, eu te processaria!- gritou a
mulherzinha enfurecida.
-A senhora
conhece Alfonso Hernandes Castelo?
A mulher
tremeu os lábios, cravou as unhas esmaltadas no couro da poltrona e sentiu uma
lágrima de pavor umedecer-lhe a maquiagem. Apanhou um lencinho perfumado,
baixou a cabeça para se limpar. Sentiu que o homem sorria, então se apressou em
se recompor.
-Como eu
dizia, eu me casei muito nova, e meu marido havia sido empossado como vereador.
Um cargo bom, bem remunerado, e que exigia pouca frequência...Eu era jovem, e
muito fértil, e um filho àquela altura só atrapalharia meus planos!Queria
visitar a Europa!Todas as mulheres dos outros vereadores diziam que conheciam
umas lojinhas de bolsas artesanais na Holanda... Já te contei que meu avô era holandês,
não é mesmo...?Eles têm flores lindas por l. - O homem havia franzido o cenho,
e consultou o relógio.
-A senhora
dispõe de mais dois minutos.
-Depois dos
três abortos, mesmo numa clínica especializada, eu sofri uma pequena hemorragia.
Eles disseram que não era nada.Os exames não apontaram nada, mas, nunca mais
consegui engravidar!Às vezes acho que foi um castig...
-E a senhora
quer que eu manipule o DNA para liberar as características fenotípicas
negroides na criança. Posso saber por quê?
-Fenoquê?
-Por que a
senhora quer um negrinho, já que ambos são brancos? Digo, por que não
simplesmente adotam?
-Já cogitamos
isso, mas meu esposo prefere ter seus próprios filhos, além do mais, nem
sabemos de onde vieram a maioria dessas criaturas; o passado dos pais; se são
viciados, ou carregam alguma doença... Meu marido acha que uma criança negra
repercutirá bem na campanha, mas queremos fazer tudo com a maior segurança e discrição...
-A adoção de
um filho legítimo de cor!Uma jogada de marketing interessante!
-Obrigada,
doutor!Estamos nos esforçando pra alcançar a presidência!
-Como lhes
disse, o processo ainda é muito recente, e ambos assinaram um termo de
compromisso que nos isenta de qualquer responsabilidade no produto final do
procedimento.
-Sim.Nós
temos consciência disso, mas sabemos que valerá à pena!E em caso de algum
contratempo, minha gravidez será passada no Canadá.Existem boas clínicas de
aborto por lá!
-A senhora é
mesmo muito perspicaz!Então, sucesso para ambos!-disse o homem já estendendo a
mão para o aperto- Se não se importa, tenho uma outra paciente me esperando. Minha
secretária lhes passará uma lista de exames, e em quais clínicas devem ser
feitos. Eu os encontro dentro de uma semana, para coleta dos materiais para a
inseminação.
A mulher a
apertou, meio ressentida a mão do ginecologista e o deixou apressadamente. Estava muito
eufórica, e
confiante.
Anderson Dias Cardoso.