quinta-feira, 18 de agosto de 2011

O Taxidermista.

Tamanho esmero e destreza e já não podiam discernir em figuras estáticas, entre obra ou ser vivente.
Cruzou a soleira do artífice aos 13 anos, e ele o saudou como posteriormente outras tantas vezes marcando páginas gastas de “O Mágico de Oz” enquanto sorria inquirindo o motivo da visita; e o garoto disse que queria aprender o ofício.
O homem disse ser sujo, feio e repulsivo antes de terminado e o garoto disse ter estômago forte, então ele se deu por satisfeito por sua coragem e lhe fez uma proposta.
-As lições por um favor!
-Que favor?
-Algo que talvez nunca tenha de fazer, e mesmo que faça não lhe custará dignidade ou quebrará seus princípios...
-Preciso saber o que é.
-E eu preciso terminar aquela lontra... Pegue uma linha e agulha que lhe mostro como costurar e dar forma.
As mãos enchiam a pele, o homem o permitia dar um ponto aqui, outro ali, e naquele dia nada aprendeu além de se encantar com a perfeição daquele corpo ainda meio armado em arame e palha.
O lar do artesão era uma selva congelada, de cheiros estranhos e animais olhando dignamente o vazio e o garoto conheceu ursos, cobras, onças, garças e outros inomináveis devido à grande variedade e sua memória ruim. Às vezes era perturbado com movimentos imaginários das criaturas mortas, mas com o tempo se tranqüilizou por nunca ver descer do pedestal mesmo uma rã.
O mestre era sempre requisitado; sinceramente o melhor do país, e por acúmulo de encomendas o garoto o auxiliava cada vez mais e sorvia os segredos da profissão. O homem se orgulhava, e esperava para breve a equiparação do pupilo, que era esforço e paixão.
Eles se respeitavam.
Nos intervalos o taxidermista o congratulava pela extração perfeita do couro, ou pela a atenção em congelar um espécime o mais rápido o possível, na separação das químicas de conservação, a cânfora, ácido bórico, formol, glicerina, arsênico, carbonato de potássio... E então ele propunha um chá com pãezinhos e uns minutos de descanso.
Eles merendavam, e o homem se perdia novamente naquele livro; voz ou ruído algum o alcançava. Algumas vezes haviam conversado à respeito dele, e ficou claro que era um laço afetivo entre um homem velho e uma família morta à muito tempo. Uma predileção que o marcara e o trazia para perto destes afetos.
A relação pedagógica foi se diluindo ao longo dos anos, sendo substituída por amizade, e a qualidade indistinguível da arte do aprendiz o levou à uma proposta de sociedade.
Ele sorriu, e aceitou. Sabia da importância de sua ajuda, e do carinho do convite, e aquele foi um dia trabalhoso e feliz, um conjunto de répteis foi entregue e o soldo proporcionou uma mesa farta e um passeio tranqüilo no museu ao fim de tarde.
Entre armas e armados se desenvolvia histórias em figuras e eventos imaginários, representações tendenciosas. “Bichos” e objetos também traçavam períodos e eventos, e até fábulas se integravam à realidade para ser atrativo aos pequenos.
Era tudo belo, mesmo em tamanha pobreza de iluminação.
Em um canto as personagens de “O Mágico de Oz” desfilavam pela estrada de tijolos amarelos. Era uma composição pouco ortodoxa, com uma Dorothy não tão jovem, um Homem de Lata e uma “Leoa” impúberes, mas todos com rostos estampados por um sorriso satisfeito!
O ajudante não notou o “Espantalho”, talvez não houvesse, mas a surpresa maior foi ouvir seu mentor dizer:
-Não são lindos? Levei dois meses e eles parecem tão vivos quanto quando estavam!
O homem tombou, mas não deixou que a morte levasse consigo seu sorriso.
O pupilo não esteve na leitura do testamento, antecipara em muito o favor, e logo o corpo era entregue naquele mesmo museu.
Finalmente o quadro foi completado com um espantalho de rosto vincado, sorridente; e não somente Dorothy pôde voltar para casa.


Anderson Dias Cardoso.

domingo, 14 de agosto de 2011

As Bodas de Faraó.


A solidão lhe incomodava depois de tanto tempo e ele deu ordens aos seus assessores para que noticiassem sua intenção de contrair novas bodas, então todas as mídias foram inundadas por fotos e matérias a respeito do bilionário solitário.
No processo não foram estipulados requisitos para as candidatas, pois era considerado que qualquer um deles poderia ser simulado então era mais proveitoso deixar vir cada uma em suas próprias características, e uns poucos excessos.
A seleção, contrariando as expectativas, não foi franqueada a alguma emissora e se deu de maneira mais discreta o possível em lugares obscuros e por métodos totalmente desconhecidos, mas nada impediu a proliferação natural de boatos, dos quais o mais comum dizia que o pretendente pertencia a descendência de um faraó da XXX dinastia; um filho de Nectanebo II era a constante mais glamorosa, ou menos ofensiva.
O concurso não demorou mais que oito meses; a idade avançada, a saúde vacilante e a crescente impaciência afetiva o adiantaram muito e fizeram ignorar uns tantos procedimentos para uma escolha sensata.
Foram descartadas  todas as aparentes oportunistas, mas algumas se dissimularam tão eficientemente que era impossível não desconfiar de toda honestidade demonstrada.
O par que se formou era dos mais grotescos!
Ela era da idade de 19 anos, pele fresca, olhos escandalosamente verdes, fios trigueiros mas tais atributos não chamavam tanta atenção quanto à boca delicada que sempre exibia um sorriso travesso.
Ele contava 84 anos, e o corpo vestia-se de rugas, os olhos tinham pálpebras pesadas, das quais as inferiores se debruçavam em bolsas volumosas, o cabelo era ralo e artificialmente negro, e ainda, seu muito peso e pouco bom gosto ao se trajar escondia com escândalo o mínimo carisma que possuía.
A ninfeta se acostumou fácil à fama, e se dizia cada dia mais apaixonada e proclamava seu desejo de um filho, que sabia não ser mais possível.
Chamava seu “amor” Faraó e contratou pesquisadores para rastrear a raiz genealógica, e logo comprovou (não se sabia se por fraude ou verdade), que realmente pertencia à nobreza egípcia!
A mulher promoveu eventos culturais relacionados à terra do Nilo, insistiu em uma maior valorização desta civilização e espalhou hieróglifos e demóticos por toda parte.
Se havia zelo por parte da esposa, maior era o dos empregados mais próximos.
Eles reclamavam dos discretos adultérios, gastos astronômicos com supérfluos e implicâncias com serviços e relações entre patrão e empregados, que eram ridiculamente amistosas.
Uma pneumonia acamou o magnata, e a iminência da morte circundou o leito de afetos, interesses e ansiedades.
A morte veio tranqüila dois dias após o diagnóstico, e a viúva tinha os olhos sorridentes e a boca contorcida em uma angústia forjada.
Ela designou responsáveis para realizar um pomposo enterro, porém o mordomo a alertou que tudo havia sido previamente preparado e que ela só precisava se ornar com suas melhores vestes.
O desejo de um enterro discreto foi cumprido; mesmo sua morte não foi anunciada, e somente dois carros levavam o cadáver para seu descanso. Eles continham o mordomo, duas camareiras o motorista e a belíssima esposa.
Ela vestia vermelho e contrastava em muito com as roupas negras de todos.
A viagem foi longa e sinuosa, ela dormiu um pouco e quando acordou se viu  perdida numa vastidão de caules cinzas e copas verdes, era um lugar estranhamente belo e pelas frestas das árvores viu haviam alguns montes marcando o horizonte.
O carro parou quando a mata o engoliu, e eles desceram o esquife sob protesto da viúva; ela reclamava do absurdo daquele local e funeral, mas os seguiu por um caminho muito longo naquela mata, convencida por uma clausula testamental citada com muito entusiasmo pelo mordomo.
O caminho estreito findou se em uma gruta, o chofer se adiantou alguns minutos e puderam notar pequenos fachos brilharem naquele interior, eles os reconfortavam e espantavam um dos medos primordiais, então todos entraram e caminharam bastante à meia luz e quando os joelhos se tornaram em tormento avistaram uma parede talhada na rocha, e uma pequena porta ainda mais sólida.
Ao entrar um espanto!
 Um altar dourado era o centro do salão,no qual foi deitado o corpo todo atado, o teto e chão eram forrados por estátuas, vasos, jóias e todo o panteão egípcio estendia suas mãos para os receber.
Era realmente lindo. Assustador!
A mulher se virou no ímpeto de escapar daquele lugar, mas uma das criadas a segurou os pulsos.
Ela se debateu muito e outras duas destas figuras se aproximaram para a confortar, e mantê-la ali;o mordomo palmilhou tranqüilo rumo à porta, e dando duas voltas nas muitas trancas  atirou a chave por um buraco escavado e adornado por pictogramas.
Ele se virou para todos, e disse a ela:
-Não se preocupe, passaremos juntos a uma nova vida onde o Faraó será jovem e vigoroso e nós seremos parte de seu novo reino!
Não houve mais barulho algum, somente um fraco murmurar de uma mulher que se recusava a morrer.
 
 
Anderson Dias Cardoso.
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