quarta-feira, 23 de novembro de 2011

Pinóquio.

Cresceu, e se desenvolveu para ser construtor de impossíveis!
Escavou sucatas tecnológicas e ao longo dos anos montou corpo de fios, metais e transistores e cobriu com sintéticos e o deu aparência de homem.
Deu-lhe sensibilidade ao toque, percepção dos espaços e razão; tal qual a que possuíam os nascidos de carne; e um nome, mas agrilhoou-o à submissão amorosa e ele o acompanhava, devoto, à onde quer que fosse!
Apesar de incrível, a criança artificial foi mantida guardada como relação e nem um olho conheceu sua forma, ou ouvido ouviu suas súplicas.
Era açoitada pelos humores ruins do pai, e se o corpo era resistente, a alma se quebrava todos os dias.
Os muros altos da propriedade tentavam esconder os maus tratos, mas a voz gritada carregava longe as pragas, a ouvidos incomodados, e às vezes, solidários, mas o homem se provia de enlatados e cereais, para períodos tão longos que já quase não o viam, e se faltava contato, ou relação não havia quem ameaçasse denunciar, e a própria apatia e comodismo calavam por si muitas bocas!
-Desgraçado!!!Era o impropério dileto, e o som de metálicos se entrechocando seu acompanhamento! Um murmúrio respondia, e era silenciado por outras obcenidades antes que concluísse a queixa.
Era assim o dia inteiro...
Da loucura do homem agora diziam que as luzes foram apagadas de todo, e que uma vela caminhava, alumiando uns poucos passos a diante, e que se reduziram os gritos em favor de conversas nervosas e indecifráveis, aparentemente binárias.
Vez em quando alguém ousava saltar os portões tentando ver ou ouvir mais do que os boatos diziam, mas ao roçar de pés na grama se cerravam as cortinas e silenciavam-se todos os ruídos.
Após muitos dias tranqüilos gritavam novamente, e houve espancamento e humilhações até o cair da noite, hora em palavras, outra, em números.
Dia seguinte, e as vozes se alteavam novamente e todos os quebráveis eram consumidos pela ira que alguma vez parecera diminuída, e a briga persistiu até que ainda houvesse disposição, e o que se sucedeu naquele tempo ocorreu de novo, e de novo, até que a situação se tornasse absurda aos que acompanhavam as surras e ameaças.
Decidiram-se que a tutelar seria resolução menos cruel que deixar que o velho matasse a criança!
Quando a polícia arrombou a porta a casa os saudou com poeira e mau cheiro.
As poltronas haviam sido cobertas pelos tecidos orgânicos das aranhas; peças miúdas de mobília estavam nos cantos onde foram atiradas, e o mofo se aproveitava das infiltrações para colonizar e se expandir pelas superfícies abandonadas pelo cuidado.
A escada não mais subia, ou descia; e a luz sentia dificuldade em adentrar mais que uns poucos metros naquele ambiente de sombras fortes e pó revolto.
O lixo foi depositado rente às paredes em sacos gotejantes de sobras e detritos; algum pé esbarrou em um prato meio cheio de comida industrializada, e uma massa pulsante de larvas gordas.
O primeiro dos oficiais da tutelar se espantou, segurou o vômito, e brilhou sua lanterna para localizar algum movimento e se distrair do asco que sentia, notou o reluzir do seu facho em um corpo pouco humano e meio metálico, agarrado à uns poucos ossos grandes. 
Disseram que assumira o nome de seu pai, e ainda que fora criado como instrumento de afirmação conheceu o amor, e por fim, tornou-se uma imitação de vida tão fiel que não fosse a morte do criador, seria seu orgulho...

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 20 de novembro de 2011

Visita Íntima.

Quando os cheiros de pequi e frango lha acariciaram as narinas ela sorriu; um sorriso melancólico, espaçado demais de qualquer outro.
Provou o tempero, sentiu o açafrão tocar suave a língua e se lembrou de elogios e carícias e a saudade moveu algo no peito. Ela mandou que o sentimento aguardasse.
Lavou-se do suor e da gordura em água fria, esfregou com o resto de condicionador os cabelos escuros e quando se secou o corpo pediu uma gota de perfume para tornar sua simplicidade um pouco atraente.
O pano de prato atou a marmita com um nó arrochado, a garrafa de suco se assentou junto ao amarrado na rota bolsa e logo ela corria ao ponto, temerosa de perder a hora da condução.
Era magra, seus olhos pesavam de tristeza e sua pressa nunca a deixava ser percebida por quem a pudesse oferecer alguma compaixão, então seguia seus ciclos de trabalhos e visitas tão naturalmente como se seu fardo se tivesse incorporado à vida.
A viagem, apertada e quente, durou além de suas duas horas e meia.
O pátio-estacionamento do lugar se movimentava com uma torrente de outros sofridos em quanto o sol ofuscava e atiçava suas ansiedades com seu incômodo. A maioria ali era de mães e esposas de detentos.
E assim como em toda fila são compartilhadas vidas em conversas de oportunidade, naquela a afinidade de sofrimento trazia um pouco alento e empatia aos visitantes que se distraiam em reclamações e queixas.
Débora permaneceu silenciosa em todo percurso, e quando virou à direita no sólido e estreito corredor do complexo lhe apontaram um outro segmento.Quando sua mão empurrou a porta indicada se encontrou em um claustro.
Ela esperou.
-Dispa-se!- A voz não tinha tom identificável de sentimento algum, mas ela se assustou com a forma rude e agigantada do agente.
-A televisão disse que eu podia reivindicar uma agente...
-Isso aqui é a realidade dona- A voz intimidou, e a amedrontou por tamanha brutalidade e o corpo do homem se arqueou em sua direção ameaçadoramente- e nela só há uma agente para nem sei quantas mulheres!Tire logo essa maldita roupa se quer ver o desgraçado do seu marido!
Ela tentou outra reclamação, mas logo ele já estava junto ao corpo.
Tateou os ombros, correu as mãos pelos braços descarnados e ela fechou os olhos e murmurava uma oração de livramento.
As mãos lhe apalparam os seios dolorosamente- Estes filhos da puta desses repórteres gostam de moralizar a instituição, mas não sabem o inferno que é trabalhar por aqui- as mãos desceram às poucas curvas que possuía até o ventre; a mulher tremeu de asco e horror.
-Toda humilhação que passamos aqui, as condições ruins de trabalho e o perigo constante de lidar com essa raça de desgraçados...
A boca secou-se, e ela conteve ainda nas órbitas as lágrimas de vergonha.
-Pronto, senhora!Agora pode ir lá ver seu esposo- A voz voltara à monotonia anterior e ele deu um passo ao lado esperando que ela recolhesse suas vestes e saísse.
Antes que cerrasse a porta atrás de si ouviu-o elogiar o cheiro da comida- Você é uma boa mulher, não irei violar suas coisas...
Ao indicarem a cela de visitas íntimas ela terminou cabisbaixa o trajeto até chegar ao cômodo gradeado, de privacidade montada de lençóis e cobertores. Os carcereiros estipularam seu tempo, e ela entrou.
O leito era um armado de cimento e espumas amarelas saltando de seus forros, o cheiro de suor e mofo enjoavam-na o estômago.
Notou um pequeno dobrado sob a cama, apanhou-o, arranjou melhor o lençol e se sentou para ler.
Quando os olhos pontuaram a última linha, um, que não era seu marido adentrou a semi-tenda e ela entendeu o que devia fazer.
Seu marido não a encontraria daquela vez.
Ela abafou seus gemidos de asco, enquanto o homem alteava os seus, de prazer; como símbolo de posse e potência.
A droga consumida sempre era paga... Nem sempre em espécie...
O coito durou tanto quanto o valor da dívida, e quando o estranho a deixou ela ainda continha suas lágrimas.
-Pode entregar isto ao meu marido?- A palavra se desprendera da boca, mais dorida que nunca, e ela moveu o embrulhado ao homem.
Quando o aroma da comida se escapou dos intervalos da marmita e encheu todo o ambiente a carranca do homem se tornou em sorriso, e a língua saiu de sua toca, e varreu prazerosamente seus lábios, e enquanto deixava o lugar seus dedos já desatavam os nós...

Anderson Dias Cardoso.
Related Posts Plugin for WordPress, Blogger...