Milhares de barracas de encaixe em madeiras coloridas, toldadas por trançados de palha exibiam cada qual sua mercadoria.
Condimentos, caças, vestes e o que quer que se necessitasse era encontrado na Feira dos Gansos; nome dado ancestralmente por se tratar de um local de rinhas de aves e que agora estendia seus espaços por ao menos mil passos graúdos.
Comerciar era uma arte, e toda a arrumação das barracas era disposta antes como banquete aos sentidos, e a própria distribuição dos comércios seguiam a seqüência: cheiros, sabores, diversidades de casa e vestuário, e só em sua periferia se encontravam animais frescos ou vivos.
-Um quarto por quilo de cebola?- A voz gritada se esforçou em constranger o comerciante por um preço tão absurdo.
-Mas são de ótima qualidade, como comprovou outro dia, Vataia. - A voz baixa tentou diminuir o impacto do escândalo.
-Realmente eram deliciosas por um sexto!-A mulher não diminuiu o tom da queixa, e alguns passantes deram mais atenção à rixa.
-A senhora sabe que a queima dos campos periféricos do norte prejudicaram as expectativas de colheitas, todos os vendedores estão aumentando seus preços.
-Isso é um absurdo!-Gritou a mulher com a cabeça segura entre as mãos em atitude de desespero- Aposto que os anciões nada sabem destes abusos!
Uma quantidade expressiva de pessoas se ajuntava ao redor da cena, e o homem sentiu suas faces enrubescerem e as palmas suarem ao ponto de gotejar. Limpou-as no avental de algodão cru e pediu com voz contida que ela se retirasse de sua banca.
-Eu mesma os denunciarei! Você e todas as barracas que aumentaram os preços sob pretextos falsos.
-Nossas barracas e preços dizem respeito à nós, deixe que venham neste lugar e eu mesmo me acertarei com os velhos!-Disse rangendo os dentes.
A multidão murmurou pragas sobre suas terras e colheitas, e ele retribuiu balançando os punhos e fazendo reluzir o bronze do punhal que carregava consigo.
A mulher saiu com sua bolsa mais pesada, disfarçando o sorriso:
-Cebolas cozidas na minha sopa!
Com a vizinhança esvaziada por boatos de uma seca persistente e seus cachorros abandonados entristeciam a vizinhança, e ele, ao se aproximar da soleira notou uma sombra saltando a cerca com alguns pertences seus. Não correu, suas pernas não tinham envergadura satisfatória para uma corrida, e seu corpo franzino não recuperaria nada, a não ser que lutasse com pulgas.
O gatuno havia lhe furtado as polainas, um pedaço grande de queijo e notou ainda a falta de um tacho de cobre e quatro peças. Cruzou o batente e fechou a frágil porta atrás de si.
As pernas doíam bastante, e as costas pesavam como se os fardos de feno ainda o oprimissem e ele descalçou as sandálias, lavou os pés e mãos e se deitou no enrolado de lã e palha que lhe formava um colchão estranho, porém confortável à um corpo tão cansado.
-Dizem que o sono alimenta... Vou agora me fartar!-Sorriu tristemente consigo mesmo.
Lançou-se pesadamente sobre o ao amontoado e sentiu os músculos se relaxarem muito devagar, a mente se aliviou de sua consciência e seus campos incendiavam novamente e ele tentava apagá-lo com as próprias mãos, mas era inútil e doloroso.
O sonho durou a noite toda.
Pela manhã corpo se contorceu dorido, e o estômago o alertou que já passara muito tempo sem trabalhar um bom pedaço de pão. As imagens de seu drama noturno lhe voltaram à cabeça, ele mandou que fosse embora e rumou para o forno de barro, e a portinhola gritou alto pela sua violação.
A mão tateou todo o interior procurando o bocado seco que deixara no dia anterior, e em seus movimentos tocou o vazio até que algo saltasse ao seu indicador lhe arrancando um grande naco.
-Maldito!-Arrancou a ratazana gorda do lugar atirando-a no chão batido.
-Morre desgraçada!Morre!Morre!Morre!-Pisou a cabeça peluda e os olhos vermelhos saltaram das órbitas, e a calda repulsiva tremeu uma última vez.
Não teve vontade de removê-la de sua cozinha. Limpou o sangue num trapo sujo e saiu a procurar alguma batata para acalmar os reclames de seu estômago.
Cavou longe dos canteiros queimados, e encontrou uns poucos tubérculos comidos de traças e os guardou nos bolsos, e logo que o sol agrediu suficientemente sua pele resolveu se por voltar pra casa.
Cozinhou-as como as havia apanhado, derramou o caldo marrom no solo esperou que esfriasse um pouco e logo a girava entre os dedos, notando os furos por onde haviam entrado as pequenas criaturas.
Já não se importava com aquela degradação. Mordeu o pedaço de fogo e gritou pela sua estupidez.
Atirou a batata para longe, mas logo riu!Riu!Riu!Riu!Um riso de lábios queimados e desespero!
-Perdi minha colheita!Meu cão!Minha esposa!Hi!Hi!Hi!-O riso era estúpido, e ele não ousava o libertar próximo à desconhecidos, continuou até adormecer novamente, com uma outra batata entre dedos.
Anderson Dias Cardoso.