quarta-feira, 21 de setembro de 2011

Os Lobos.


Pezinhos sonolentos deslizando no carpete fofo, e com um salto a garotinha alcança aquele platô acochado e se mete debaixo de pesados cobertores macios.
O cheiro de roupa de cama limpa é a delicia de suas narinas, e a boneca de pano já se encostava ao travesseiro adjacente se preparando para também se divertir com histórias de ninar.
A porta se abre silenciosa, e uma luz mais sólida que a do abajur que invade o quarto é rompida pela sombra amistosa; logo a dona do livro beija-lhe a testa, cobre-a ainda melhor, e só ai aconchegou se num canto da cama.
A história era a sua preferida, e ela se via vestida daquele vivo capuz vermelho correndo teimosamente por atalhos contra-indicados carregando a pesada cesta de agrados à vovozinha.
As mãozinhas se contraiam quando a mãe anunciava a presença do malvado lobo e o coração seguia o compasso dos passos do monstro, mas fosse a tal menina ela correria ainda mais, e sabedora das tramas se livraria, e vovozinha alguma seria banquete da fera oportunista!
Depois de devorada a velhinha a tensão se concentrava no embate entre as principais personagens, e a garotinha deixava transparecer ódio e sentimento de vingança que ao clímax; onde a invasão do lenhador e a extração sanguinária da senhorinha era extravasada em risos e palmas.
Com peito ofegante, e delicados filetes de suor perfumado descendo desde a cabeleira agora emaranhada ela se joga no abraço materno, saudando-a como co-participante da vitória de tão dignas personagens.
A euforia foi interrompida por uma questão que lhe veio à boca tão rapidamente que teve que ser repetida mais calmamente para que pudesse ser esclarecida.
-Mamãe... O que é um lobo?
-É um monstro malvado!
-Eles são muito maus, né mamãe?
-Sim... São todos lobos maus...
O sono a surpreendeu ainda com sorriso nos lábios, e se foi o travesseiro que a sufocou ou se a motivação do crime foi vingança pelos ciúmes de um marido infiel.Não houve tempo para rancor; ela mesma agora era parte de uma história à ser contada.
 

Anderson Dias Cardoso.

domingo, 18 de setembro de 2011

Versões do Filme.

Agora encarnava um encanador apaixonado, mas já fora samurai, alienígena e imperador em seus papéis mais importantes; dos coadjuvantes e figurações nem fazia menção.
Foram daqueles períodos de bebedeiras, degradação não dignas de sua estrela, e que provavelmente seriam apagadas de seu passado por assessores de relações publicas.
No coquetel de encerramento das filmagens já cogitavam que pleitearia um Oscar na próxima premiação, mas isso não era surpresa para aquele talento.
As boas perspectivas se concretizaram na estréia, e nos concursos e bilheterias notáveis e o herói se movia em múltiplos universos midiáticos como ator definitivo.
Na vida, nenhuma novidade além daquele boato à seu respeito que esfacelou também a monotonia da internet e que dizia absurdos, dos quais seu uso e dependência de psicotrópicos.
Ele se riu; realmente havia abusado de bebidas e cigarro, porém sempre considerou as drogas uma prisão forte e desnecessária. Boatos às vezes o divertiam, além de manter sua figura lembrada.
Com as semanas a imagem de bom moço, cuidadosamente cultivada parecia frágil à novas investidas de criadores de ficção e vários compromissos e participações foram desmarcadas, com desculpas incoerentes; ele as aceitou, e se prometeu nunca mais aceitar-lhes qualquer convite.
Naquele dia os blogs o casaram com uma filipina misteriosa, em uma cerimônia secreta em um lugar oculto logo após se decidir por procurar se reabilitar em uma clinica sueca e em uma semana havia recuperado dois dos nove quilos perdidos e projetava uma prole mínima de cinco pimpolhos.
Era ridícula aquela vida paralela, fantasiada. Ele se recusou à responder cada acusação e desmentir toda fofoca mas aceitou a idéia e itinerário de uma daquelas mentiras.
Perdeu os oito quilos excedentes em um SPA sueco; a única verdade daqueles dias.
Sua mente se apaziguou totalmente quando preferiu revistas velhas e clássicos literários ao invés de televisão.
Um mês inteiro desta calma lhe saturou os sentimentos, e ele se resolveu por voltar à agitação de sua vida célebre.
Encontrou alguns narizes torcidos logo no desembarque, e massivas demonstrações de repulsa em toda parte.
Quando procurou por seus pares a empatia havia desaparecido em meio à conversas mornas e risos nervosos.
Descobriu, por terceiros que havia tentado forçar uma menor na mesma clinica em que se tratava e comprara o silêncio e deportação ao invés de detenção, a esposa havia reclamado de sua conduta e contratou advogados para resolver-lhe o litígio.
Debitaram-lhe ainda tais acréscimos: Perdas imensas no mercado imobiliário, uma filha bastarda com uma porto-riquenha, aquisição de um cavalo árabe para pratica de esportes, negação de propostas de candidatura para deputado pelo Texas e ainda outros tantos boatos que entretecidos cobririam ao menos oito anos de vida.
A noite daquele dia de leitura se alongou num tormento insone, e ele tentou vários telefonemas na madrugada para desfazer os comentários em algum programa.
As agendas programáticas cheias, o horário incômodo e sua influência diminuída contribuíram para a não resolução das farsas, e a solução foi desmentir nos principais blogs sua vida criada e ameaçar com processos quantos outros episódios nascentes.
Descobriu, fora do universo virtual, que suas poucas amizades se recusavam ser associadas à ele de qualquer forma, assim como os estúdios. Felizmente restava o dinheiro e imóveis; mas eles foram sendo dissipados pelo estilo de vida perdulário e acessos consumistas puramente emocionais.
O tempo apagou-lhe a centelha televisiva quase de todo, e suas muitas vidas se fundiram em uma biografia aberta virtual e os escândalos se restringiam quase totalmente à web.
Ainda volumosos esses movimentos de construção e desconstrução da imagem do ator na rede davam um bom dinheiro aos blogs sensacionalistas; e num apartamento aconchegante, mobiliado com peças discretas, ele acrescia seu próprio mito, vencido pela mentira ganhava a vida se interpretando de uma outra forma.


Anderson Dias Cardoso.
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