Continuavam o ritual
aqueles passos anestesiados a formarem filas intermináveis; de crianças à muito
velhos, seres que teimavam em abanar as partículas de pó fino que se tornara íntimo
do traje de ofício, e que era necessário deixar antes se despir e poder se
amontoarem num dos diminutos espaços de estofado carcomido do transporte!
Sempre era tudo um pouco mais turbulento, e distorcido
enquanto permanecia de olhos fechados, meio inconsciente, mas ainda assim quase
não escapava da previsibilidade do dia à dia ao qual já vinha experimentando a
alguns bons anos.Havia ainda os tais sangramentos nasais por conta da troca das
máscaras de profundidade por filtros aéreos internos; incômodos de certo, mas
ao menos não impedia a fala!
Quanto ao calor abafado de tantos corpos, este induzia a uma
quase nudez geral, resultando em tentativas de todo tipo de promiscuidade sendo
no entanto rechaçada por um ou dois monitores armado de borrachas que por vezes
se faziam ouvir quebrando dedos e até braços!
Aquela subida, em particular, deve ter demorado as
costumeiras duas horas ,tempo para que o corpo se acostumasse com uma variação
de mais de quinhentos metros, e os recentes percalços com lamaceiros em
determinados pontos, muito comuns nessa época do ano.
Despertou quando ouviu que a agitação denunciava a chegada
na área de desembarque e,ainda muito
sonolento se viu sendo encaminhado aos galpões de averiguação, onde nenhum
orifício era poupado da desconfiança de estar carregando qualquer minério ou
pedra de valor.
Como rotinas, tudo era feito com tal indiferença e desprezo
que as consciências se desligavam, mesmo que com corpos empurrados, beliscados,agredidos,
humilhado, mas geral se reassumiam enquanto caminhavam para algum container de
distribuição de suprimentos, ou, quando o toque de recolher os permitia visitar
um vagão-bar para apreciar, mais do que a bebida, a companhia de uns últimos
vagabundos alegres que ainda preferiam a nostálgica degradação alcoólica à
“viagens de implantes”!
Como de costume empurrou umas dúzias de cansados que se
afunilavam tentando alcançar a estreita porta única; a uns moveu, outros
vestiam dimensões e pesos que estavam para além de suas forças; e enquanto se
arrastava para seu descanso olhava
melancólico para as luzes que marcavam pontos naquela gigantesca cratera.
Comentou com voz fanhosa, de si para si que aquela garganta
monstruosa ainda iria engolir ambas as cidades, a móvel e a de pedra, e foi
surpreendido pelo olhar e resposta dum esqueleto baixo e calvo de que isso
seria assim, já que haviam encontrado um “veio
gordo” à uns oito quilômetros dali, e que alguma maquinaria já esta sendo
deslocada pro lugar ainda naqueles dias. Tudo isso fora dito com muitos gestos,
e indicações de um dedo sujo e atado por um nó de trapo que lhe servira de
estanque para o corte.
Achando interessante o mexerico do homem resolveu perguntar
que fim levariam as famílias assentadas, a curiosidade atraiu outra alma,e uma
mulher raspada e de cor acrescentou que haviam boatos de que a polícia ameaçava
e obrigava os cidadãos da periferia a assinarem sem reembolso suas “cartas de
despejo”!
Nessa altura a conversa já não mais pertencia a aquele
pequeno grupo e uma voz sem rosto lhe disse às costas que a TV Estatal
desmentira tudo, outra brincou que bastava dar aos desabrigados (em sua grande
maioria alienados) alguns créditos para gastarem em neuroestimulantes ou incursões em suas “particulares versões de um
mundo melhor”, ainda outros concordavam que na verdade aquela região pertencia
ao Estado, e que os tais miseráveis mereciam ser expulsos afinal, e outro
dizia, e outro, e outro...Logo todos zumbiam suas vozes e procuravam se
aproximar do epicentro de onde surgira o diálogo, e os comprimiam e
sufocavam....
-Calem a boca!Tem um “borrachudo” ali...- alertou alguém
sensato e naquele mesmo instante as vozes indignadas sumiram das bocas; cada
qual já olhava disfarçando para uma direção oposta ao debate, mas a mão da
mulher se estendeu, e apertou seus calos contra os dele tentando se manterem
juntos até encontrarem a rua, mas isso não foi possível, e eles foram
distanciados um do outro pela força do fluxo dos que deixavam o lugar, e não
notaram um no outro que se separavam sorrindo.
A urgência e a agitação sempre aumentava naqueles metros onde uma demagoga liberdade
sorria seu simpático engano aos que deixariam o complexo, e era engraçadamente
estranho se comparar com os gigantescos muros que guarneciam aquele locar.
Fora, uma centena de passos num lugar onde aquela massa
turbulenta começava a se dispersar em suas caminhadas solitárias de regresso,
caronas improvisadas ou uma demorada espera por transporte público e ele havia
decidido se albergar naquela vizinhança, num lugar costumeiro onde se
encontrava um vagão de rações bem próximo e haviam módulos com cubículos meio
higienizados e ao menos um banheiro comum por esquina!
Vinte e três minutos de caminhada calma e visitava o relógio,
calculando se haveria tempo para tomar um trago e completar seu percurso sem
ser espancado, ter seus pertences confiscados e assinar outra advertência, que
consistiria em mais uma indesejada dedução nos créditos salariais dos próximos
dois meses.
Duvidou do perigo, dobrou outra esquina e procurou aquele
bar itinerante de paredes encardidas, risadas estridentes e um agradável aroma
de fumo natural!Naquela noite suas vistas não o divisaram de pronto, mas em seu
lugar se encontrava uma lavanderia com selo ecológico estranhamente sinalizada
por uma fachada em neon multicolorido!
Cidades de pedra eram sempre lugares mais agradáveis, mas
como não se divertir com todo aquele improviso dinâmico de prédios inteiros que
sumiam de onde deveriam estar e reapareciam só Deus sabe onde...Quando
reapareciam!
Além da caminhada agora o estômago começava a incomodar, foi
quando o som de algazarra foi se aproximando notou que os corriam pela penumbra
eram crianças, daquelas descamisadas, a fazer festa provavelmente por algum furto bem sucedido.
Se perguntou se suas mães não temiam a
repreensão e cancelamento de seus benefícios pelo Estado, mas logo que avistou
aquela tão conhecida porta de acrílico se esqueceu do que pensava.Continua...
Anderson Dias Cardoso.
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