Daquelas coisas que, vez em quando acontecem com garotos
pobres que vem do interior para tentar a sorte na cidade grande:
Um belo par de asas surgiu, do dia para a noite, naquelas
costas magras, de coluna envergada pelo peso dos milhares de sacos de cimento
que havia carregado em seus poucos anos de vida.
Morava no quarto andar, mas isso não era nenhum luxo, já que
dividia espaço com ao menos cinco outros moradores fixos, e alguns eventuais,
que também acreditavam que as ilusões das metrópoles poderiam ser mais suaves
do que os dias exposto ao sol, empunhando uma enxada, revirando massa.
O garoto, de início, sofreu um leve espanto. Tentou ligar
para algum deles, mas se lembrou que suas chamadas à cobrar eram
costumeiramente desdenhadas por amigos e parentes. Foi então até o espelho, esticou aquela nova “estrutura”
que lhe havia saltado inesperadamente do corpo, e sentiu os tendões se distenderem
e os músculos do lombo se contraírem.
As asas agora faziam os movimentos dos pássaros, e todo
objeto leve dançava sob a influência dos torvelinhos criados pelo “homem-pássaro”.
Olhou para o pequeno apartamento, e aquele mundo lhe pareceu
pequeno demais para ele. Haviam redes de proteção nas janelas; e foi aí que
percebeu que aquilo não era um lar, mas uma gaiola de pombos. Pegou a faca, e
de cima de seu colchão de espuma, pôs se a serrar aquelas grades de nylon. Cinco minutos,
e estava livre!
Despiu os pés rachados dos chinelos, deitou o joelho na
beirada da janela enquanto olhava para o céu. O dia não era perfeito, mas havia
de ser lembrado até o ultimo instante de sua vida. Ele sorriu por tamanha
sorte, e saltou.
Não sabia que pássaros sofriam câimbras (talvez eles não
sofressem), e não havia tido tempo de aprender a planar. Caiu ali mesmo, naquele
discreto bloco, tendo como único espectador
o desconhecido que a sorte lhe provera para auxílio.
O homem até que tentou ajudar. Já havia sabido de outros
casos de jovens alados que despencavam de prédios; mas aquele, como costumavam
ser tais histórias, era também caso perdido.
Vasculhou os bolsos.
Encontrou carteira vazia e documentos. Deixou o RG ao lado, guardou a peça de
couro no bolso, enquanto sacava um canivete de sua bainha.
Serrou-lhe as asas, as quais teve a ideia de empalhar e
tentar convencer suas amizades de que aquilo vinha de anjo. Ninguém acreditou,
e ele, por desgosto de ser considerado o maior mentiroso do bairro, se desfez
das peças no lixão da cidade.
Os laudos da necropsia não mencionaram os cortes no dorso.
O legista era péssimo anatomista, e preguiçoso por excelência. O irmão que veio
representar a pobre família no velório, acabou por resolver tomar o lugar do
finado.
Certo dia acordou incomodado com uma forte coceira nas
costas. Parece que algumas penas haviam se desprendido do travesseiro, e lhe causaram
uma espécie de alergia.
Caso sobrasse algum dinheiro do ordenado, no fim do mês iria
se consultar com um dermatologista.
Anderson Dias Cardoso.
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