Cara magro,
bigodinho fino, bermuda com padrões nada discretos lhe tentando vender “areia
mágica para construir castelos”. De tão absurdo resolveu entrar na pilha. Pechinchou,
brigou, xingou, até que escutou a voz que insistia logo ao fundo, atrás do sol.
Ela contou, três, dois, um; e com o estalo dos dedos ele despertava da hipnose,
mas não se encontrava estirado numa poltrona, num consultório com cheiro de
livros, chão acarpetado e pêndulo dançando sobre os olhos.
Sarjeta
lamacenta, lixo, uma fauna de animais repugnantes e um cheiro insuportável. Haviam
alguns mendigos escondidos por ali, e a maioria fugiu quando resolveu se
levantar, porém um se aproximou, ainda que meio desconfiado.
À distância
de um braço parou. Mesmo cabelo, nariz olhos...Incrível!A imagem do espelho
certamente havia lhe fugido para se abrigar nas ruas.
A boca
tremelicante tentou perguntar alguma coisa, mas seu duplo se antecipou. O nome,
certamente seria o mesmo!Pensou em perguntar de onde vinha, mas sua imitação
parecia ainda mais confusa que ele.
-Você está
morto!-Sussurrou.
-Claro que
não!-Sentiu vontade de empurrar sua cópia, e fugir para o apartamento, mas não
sabia ao menos onde estava. Foi se afastando, mãos enxugando o suor, ar se
tornando rarefeito e estômago em turbulência.
-Eu tenho seus
documentos, olhe!Eu o descobri no obituário, faz uns seis meses, gostei do seu
jeito e te copiei...
O homem
ameaçou uma corrida, mas foi agarrado, derrubado e imobilizado pelo seu
simulacro.
-Está maluco!Você
não tem autorização para sair do beco. Eles vão te matar!
-Mas o
que...
-Me parece
que vocês humanos gostam de criar guetos para se distinguirem, respondeu numa
voz angustiada.
-Me
larga!-Esperneou, se debateu, tentou cabeçadas e coices, porém a criatura era
bem mais forte.
-Mas o que
você...
-Meu nome é
Ralai, de um planetinha obscuro próximo à ZZB-817; se bem que sua raça ainda
não mapeou aquelas bandas...
-Metamorfo?
-É o que
parece.
-Seu mundo
possui substantivos masculinos e femininos?
-Sim, e
obrigado por perguntar, sou uma fêmea... -Sua própria voz naquela boca foi
mudando de tom à medida que a frase era completada.O corpo acompanhou a
transformação, com suas curvas se encaixando na folga da roupa, e os cabelos acobreados
pendendo em preguiçosas ondas, ornando com a pele sardenta que provavelmente
não era sua.
-Se não me
sentisse aterrorizado por estar em um sonho maluco eu diria que isso é
fascinante.
-Normal.
-Você cheira
bem para quem vive nas ruas...
-Não sinto nada.
Devem ser feromônios...Já tive problemas com algumas pessoas...e cães também.
-Eu sou
Eleautério!-Sorriu, mas a criatura estava às suas costas.
-Eu sei. Gosto
desse nome.
-Poderia me
soltar agora, acho que me fraturou uma costela.
-Desculpe. Foi
para seu bem!
-Seu cheiro
é realmente muito bom!E, a propósito, onde esse beco vai dar?Fim do mundo,
cidade das fadas, covil do Bicho-Papão?
-Não sei ao certo.
Já Percorri alguns quilômetros, e isso fica mais largo, ou estreito em alguns
pontos.Algumas pessoas dizem que não tem fim.Há minúsculos mercados, praças, e
alguns dizem que até uma pequena cidade ao longo do caminho.
-Como as
pessoas podem sobreviver dessa forma?
-Nós podemos
aprender muito com a história, e com os ratos. Não é nada que nunca tenha se
visto.
-Mas... o
que está acontecendo lá fora, e como viemos parar aqui?
-Isso aqui é
uma espécie de quarentena. Já dura alguns anos.Colapso econômico por conta da
corrupção, algumas milícias na rua, muita violência, e o governo repentinamente
alertou para a inoculação de um vírus extraído de porcos, de algum laboratório secreto
lá pras bandas no norte, numa pequena célula de terroristas, que se misturaria
às comunidades, e infectariam quantos pudessem.Daí as pessoas começaram a ser
convocadas de acordo com seus números de registro, o que é muito estranho, e
forçadas a se recolherem em becos como este.No início havia uma maioria negra,
e o pessoal começou a se agitar, mas logo chegaram os judeus, homossexuais, protestantes,
moradores-de-rua, palhaços e atendentes de fast-food, e tudo ficou mais calmo e
divertido. Quanto à como você veio parar aqui, eu não tenho a menor idéia!Eu e
meus amigos achávamos que você era um daqueles cadáveres sem identidade, rosto
e digitais que costumam desovar por aqui de vez em quando.
-Estou
faminto.
-Existe uma
casa, uns quatro quarteirões daqui. Eles jogam umas sobras excelentes pela janela.Cheguei a
encontrar uma média quase intacta, uma boa carcaça de frango e umas frutas com
alguns pontinhos apodrecidos...
-Lixo!?Isso
é nojento... -Se afastou com o rosto contorcido de asco.
-A fome te
obriga, e logo você se acostuma.
-Vou tentar
escalar uma dessas paredes. Eu não vou ficar nesse lugar imundo...
-Eles nos
deixam em paz, e nos alimentam; desde que não tentemos nada. As paredes são
muito altas, lisas e cobertas por uma espécie de limo. Antigamente ouvíamos
também tiros. Ninguém se arrisca hoje em dia.
-Eu preciso
acordar desse pesadelo...
-Posso te
assegurar que não está dormindo.
-Claro!E, de
que eu morri mesmo?
-Atropelamento. Uma van escolar.As crianças
ficaram realmente assustadas quando viram todo aquele sangue no chão!
-Impossível,
deve ser outra pessoa. Talvez, um do seu tipo...
-Talvez. Se
bem que nunca dei falta de nenhum conhecido, ou fui informada da morte de
qualquer parente...Mas você não dizia que tem fome?
-Eu me
agüento.
-Devo te
avisar que o tempo-espaço aqui no beco é bem estranho. Às vezes uma conversa
durante uma caminhada pode te roubar algumas semanas, e não te levar mais do
que alguns metros à diante.
-Não
existiria alguma opção que não o lixo?
-Existem os
ratos, cães... Encontro, ocasionalmente, alguns porcos perambulando por aqui ou
ali.Já vi coelhos, certa vez; mas acho que foi em algum sonho.
-Vamos adiante.
Quero conhecer um pouco sobre este lugar.Quem sabe descubra algo à mais sobre
mim mesmo.
-O pessoal
organiza uma fogueira com jornais, restos de móveis...
-Não quero
misturar seu cheiro ao de seus amigos vagabundos. É como se estragasse um bom
perfume.
-É suor...
-Seu hálito.
Queria provar um beijo da tua boca.
-Você me
constrange.
-Eu não
costumo sonhar os mesmos sonhos, e tenho medo de não a reencontrar em outro
deles...
-Mesmo sendo
um lugar estranho, este, como lhe disse, não é um sonho.
-O seu sabor
pode me convencer- ele avançou lentamente, sem qualquer resistência. A saliva
era adocicada, e a língua possuía uma textura de veludo. Sem saber suas papilas
decifravam seu DNA.Ele a comprimiu, e ela se sobressaltou.Havia algo de errado.
-Eu não vou
lhe machucar- se desculpou; mas ela já havia se afastado muito, em direção
oposta a que devia. Dobrou a esquina, antes que alcançasse o braço. Havia ruídos
de coturnos percursionando a avenida, e logo estalou o som do tiro.
Ele correu a
favor da vítima, mas foi detido antes de tocar o corpo. O arrastaram, algemaram
e a boca havia se enchido de pó e sangue.
A conversa
seguiu estranha, e alheia a sua participação. Ao que parecia, a moça era uma
barriga de aluguel, das desonestas que vendem o produto a mais de um casal. A
criança seria um híbrido de crescimento acelerado, que já devia ter a aparência
de uns trinta e cinco anos, sem ter passado dos doze.Tal tipo de negociação era
rara, e imprevisível; encomendada principalmente por equipes científicas
criminosas disfarçadas de famílias.
Enquanto o
arrastavam e espancavam foi se percebendo como um estilhaço de realidade que
havia se fragmentado ainda em outras tantas estórias confusas, costuradas às
pressas por um mínimo de coerência. A respiração entrecortada, o corpo
entorpecido se esvaindo em sangue, então a mão esquerda se tornou garra escamosa
e tentou rasgar o oficial mais próximo.
Eles
revidaram e ele desmaiou. No fundo negro da falta de consciência rolava um
blues que não conhecia, conversas alegres e cheiro de café.
O lugar era
um laboratório. A gaiola não media mais do que um metro e meio, e aparentemente
seu nome era Salomão. Os “aventais brancos” sorriam satisfeitos.Haviam se
passado algumas semanas, e ele já não estranhava tanto sentir os cascos em
lugar de mãos e pés.A TV continuava ligada em um canal de ficção científica, e
eles disseram que foi entre um e outro
programa que ocorreram seus primeiros lampejos de consciência.Aparentemente sua
mente foi se associando, e se incorporando àqueles universos intrincados, e
fantasiosos, construindo sua própria identidade à partir dos seriados.
Eles já iam
apagando as luzes, quando ouviu o final de uma piada interna, sobre ser ético
comer a carne de um porco que se achava gente. Tentou chorar, mas aquilo não
mais o pertencia!
Anderson Dias Cardoso.
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