Havia especulações de como seria a migração das massas para
a virtualidade, e se esta mesma ocorreria como algo positivo, ou seria um
evento impulsionado pelo pânico proporcionado pela agressividade e variedade de
doenças surgidas por todo tipo de contaminação. É claro que a curiosidade, e o
espírito aventureiro encaminhou uns bons milhares às filas de inscrição, mas
toda a excitação teve de ser contida até que se calibrassem todos os ambientes
e os adaptassem como recortes bem arranjados afim de esperar que a maioria da
população se decidisse em se transferir para aquele lugar!
Coisa estranha, impensada e oculta à população; pela
obviedade do impacto emocional negativo que certamente ocorreria, era o projeto
de descarte dos corpos dos migrantes digitais!
Enquanto o Ministério da Saúde veiculava vídeos românticos
de imensos cemitérios, espalhados em pontos muito remotos e proibidos, mas com
delicadas lápides de uma sincera imitação de mármore negro, e aquele relvado
sintético bem convincente se estendendo até encontrar no horizonte um por do
sol maquiado; a verdade era que já se construíam fornos industriais não muito
longe dos laboratórios de digitalização e logo haveriam caminhões de descarte
carregando amontoados de cadáveres para serem incinerados logo que fossem expirados
os prazos de contrato de conservação e reivindicação concedido às famílias!
No caso da minoria mais abastada, aconselhavam a criogenia
com uma promessa meio verdadeira de que em breve seria provável reverter os
dados ao corpo, e numa possível descontaminação da biosfera, retornar e
recolonizar o espaço o qual lhes cabia por direito!
Haviam também muitas dúvidas e especulações à respeito de o
quanto a realidade do programa seria fiel à nossa, e em que condições e quais
privilégios estariam disponíveis aos convertidos, e isso pouco me interessou
até que comecei a notar aquele mesmo artifício do uso de perfumes fortes quando
minha mãe nos visitava em casa. Minha esposa disse que não, mas eu insisti que
alguns conhecidos se perfumavam e se maquiavam em excesso para disfarçar os
cheiros e crostas das ulcerações de algum daqueles tantos tipos de câncer. Questionei
minha mãe, e ela negou algumas vezes; chorou e me abraçou.Eu estreitei o afago
e ela me escapou um baixo gemido!
Eu disse, ao pé do ouvido que ela havia mentido, e ela se afastou.
Eu ergui um pouco sua blusa e me assustei com a costela à mostra e uma parte
apodrecida do lado.Ela se cobriu, e disse que já era de idade e que não se
intrometeria na minha rotina de casamento.Eu disse que haviam possibilidades,
mas ela retrucou que um médico domiciliar lha informou que este era dos
novos;muito agressivo!Resmungou que, além de tudo, as unidades de oncologia se
encontravam abarrotadas e seu cartão de consultas já havia sido consumido por problemas
respiratórios que a vinham acometendo. Eu pensei em a digitalizar, mas não lhe
disse nada!
Conversei com o amigo de um amigo, e ele afirmou que já
admitiam algumas pessoas para aquela primeira simulação de universo, procurei
algumas informações na rede e encontrei um quiosque bem próximo, e com uma
média de solicitações baixa!
Eles não me garantiram nada, e ainda disseram que no beta
algumas pessoas poderiam ser inseridas com algum bug físico-neural, e em alguns
casos, no salto a pessoa se perdia em algum limbo ou simplesmente deixava de existir.
Achei um tanto dramático, mas decidi arriscar.
A mulherzinha era arisca, das que nem situação ou retórica
comoviam, e eu me irritava muito que parecesse não compreender que suas fobias
por máquinas seriam menos nocivas que o destino que a esperava, e que naquele
processo todo haveria ao menos a garantia de que seu código seria limpo da
doença, seus poucos bens e ordenado mantidos, e logo que fosse possível eu e
minha esposa a acompanharíamos naquela nova vida!
Ela negou, mas como já havia subornado com grande quantia
tomada emprestada tive que me esforçar um pouco mais!Esbravejei, ameacei,
pranteei, mas mesmo tão debilitada se arrepiava e ameaçava urinar nas fraldas
pela possibilidade de se ver implantada de cabos e sifões de transporte digitais.
Se de fato nada era tudo o que se sabia à respeito dos processos, algumas
camaradas também idosas lhe fizeram figura, e asseguraram que conheciam quem
dissera que experimentara e declinara da viagem diante de tanta dor!Um jovem da
vizinhança ou coisa assim, mas, sinceramente não me lembro dele.
Como ultimo e desesperado recurso aumentei-lhe a dose dos
analgésicos, e enquanto experimentava um sono absurdo eu desembolsava mais
alguns tíquetes para comprar ajuda para transportar a recalcitrante!
Um amigo possuía um carro; eu o pedi emprestado e ele disse
que me alugaria por um ou dois dias de ração, mas isso me ofendeu, pois o
veículo antiquíssimo e falto de manutenção; provavelmente se desfaria na
viagem, me deixando à mercê da sorte. Ofereci três latas pequenas de conserva
de legumes e um pão de cevada, todos produtos de muito boa procedência, mas ele
me disse que não se importava com essa coisa de marca, eu adicionei um vidro de
compota de pêssego, e ele me entregou satisfeito a chave.
-Não sabia que ainda existiam pêssegos!-Desatarraxou rápido
a tampa e arrancou com os dedos uma peça lambuzada do doce, metendo-a logo em
seguida naquela boca cariada, enquanto eu protestava sua ajuda com aquele
corpo, que flácido pela inconsciência, parecia pesar o dobro!Ele tateou com as
mãos sujas o tornozelo, mas o transporte nos ficou meio desajeitado, abraçou as
coxas, e próximo às manchas purulentas do ferimento no vestido, não tratadas
naquele dia, foi tropeçando e contendo suas ânsias até o deitar no banco
traseiro do veículo.
No caminho clima abafado, as janelas abertas por conta do
ar-condicionado falido, e a fuligem desprendida das fábricas de reciclagem
precipitava naquela paisagem árida e deformada por montes de entulho, e umas
poucas árvores vestidas de sacolas plásticas e escurecidas pelo fumo de carvão.
Era feriado municipal e haviam muitos coletores, separadores, e fiscais correndo
atrás dos gigantescos caminhões de limpeza. Vez em quando algum deles escondia
alguma coisa na mochila de lona, possivelmente dentro da marmita vazia do dia e
ao fim daquela jornada era certo que procurariam o mercado de usados tentando
encontrar um interessado pelo achado.
Consultei o velho GPS, mas este me mentiu novamente e,
tentando acertar o rumo acabei consumindo o resto de cupons de combustível de
meu amigo, mas este me assegurou que meu guarda-roupas, o qual havia trocado
por uma torradeira, um par de sapatos de couro sintético e uma navalha com cabo
de mogno, compensaria as despesas adicionais, afinal, pra que serviam mesmo os
amigos!
Haviam diversas filas diante pequeno complexo decadente, mas
nenhum indicativo de para que se destinavam. As portas sanfonadas imensas bem
oxidadas estavam cerradas e havia um cheiro muito incômodo de urina fezes
denunciando uma espera longa, alguns ainda arrastavam cobertores estrapeados e
bocejavam seu mau-hálito a mais um dia ingrato!
Perguntei à um e à outro, mas disseram que haviam vindo pela
sopa, ou por passes para o albergue; então notei um golias armado e corri sob a
expectativa de minha mãe despertar à qualquer instante. Eu disse-lhe o nome , o
por que e de como minha mãe havia sofrido alguns contratempos até chegar naquele
lugar, ele arregalou os olhos.Era pra eu esperar uns instantes até que falasse
com umas pessoas, mas me disse que eu dobrasse discretamente umas esquinas
específicas e aguardasse um homem com um crachá laranja me trazer uma maca.
Quinze minutos depois, num corredor de prédios bem longo, em
sua derradeira unidade, se escancarou uma porta dupla donde fluíram dois homens
vestidos de branco com as respectivas identificações estampadas no peito. Não
disseram nada, mas abriram as portas e levantaram habilidosamente toda aquela
carne ,espetáculo bem mais agradável e profissional do que desempenhei com meu
parceiro!Tomaram-lhe o pulso, perguntaram-me que medicamento e dosagens haviam
sido administrados, então um lhe postou ao rosto uma máscara de oxigênio enquanto
o outro anotava aqueles detalhes.
Eles empurravam aquele aparelho muito rápido, e eu me
incomodava em ver os volumes de minha mãe dançando com as violentas e bruscas
curvas. Tentei antecipar qual seria sua reação quando transformada em um ser
binário!
Lembrava-me de uma certa discussão familiar quanto aos
efeitos daquela conversão em nossa condição protestante!A matrona havia se batizado
há algum tempo, e fervorosa, se perguntava se na perspectiva tricotomista em
que fora instruída o espírito ficaria confinado ao corpo, enquanto somente a
mente migraria para aquele outro mundo!Isso, se isso realmente fosse uma
realidade!E se a mente sobrevivesse à matéria?E se aquelas especulações feitas,
de que descartavam o corpo logo após a transição forem verdadeiras?E se a
criatura virtual não fosse, mas se convencesse de que esta era realmente eu?E
se tudo ocorresse desta forma, e eu, escolhendo ser transportada, teria
cometido um suicídio por engano?E se minha alma tivesse sido dividida entre
duas personagens, e enquanto uma descia à cova a outra, por sua vez continuaria
sua existência, como nos seriam creditadas as falhas e acertos...?
Existiram alguns bilhões de outras perguntas feitas só por
aquela mulher, mas pensar nelas, e no resultado do que estava a fazer já
começava a lhe incomodar o estômago; pedi um copo d’água, mas parece que
ninguém me prestava atenção!
Cada passo e ficava mais ansioso!Perguntei quanto demoraria
tudo aquilo, pois temia que meu parceiro se impacientasse e partisse, estando
eu com bolsos quase vazios. Eles responderam que logo tudo estaria acabado;
então dobramos mais quatro corredores e
estacamos diante de uma portinha blindada.
-É aqui!O senhor deve partir agora. Siga as setas amarelas e
não se perderá.- A voz do homem era ríspida, e desagradável!
-Não vou até ver toda a operação!-Respondi tão firme e
convincente quanto me permitiu o medo.
-Daqui pra frente é com o Doutor, além do mais, está área é
restrita, e civis não podem permanecer aqui!
-Eu pagu... -Antes que terminasse a frase já me agarravam
pelo colarinho enquanto um deles procurava alguma coisa nos bolsos.
-Vá embora moleque!Nós estamos avisando, se causar algum
problema vai se arrepender!
-Mas eu pague... -O primeiro soco me pegou de surpresa, rasgou
meu lábio inferior e amoleceu-me uns três dentes.Os seguintes, assim como os
chutes, me fizeram contorcer de dor naquele encerado.
- Você pagou pra fazer com que sua velha tivesse preferência
na fila de espera, e isso é fraude!Suma daqui, e não diga nada à ninguém, ou a
dona aqui pode ter um fim bem desagradável!
-Mas... Mas como eu vou saber que deu certo?-Eu tremia e
suava muito. Estava apavorado!
-Nós temos seu email!Nós te mandamos a chave de acesso, daí
você procura um ponto de conferência “Oficial”, e lá eles te levam pra uma
salinha onde vai poder conversar com tua velha!Agora suma; nós temos muito
trabalho para terminar hoje!
Eu sussurrei um triste obrigado e parti cambaleante procurando
a saída.
Continua...
Anderson Dias Cardoso.
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