A sirene da escola nos coagia a voltar à sala de aula. Saímos
da carcaça queimada do velho Chevrolet 78, atravessamos a imundice do pátio
enquanto íamos discutindo a respeito de algumas questões engraçadas as quais
vinham sendo apresentadas nos testes e exigidas nos relatórios semanais, que
por sinal deviam ser respondidos também por toda a família, e que envolviam
perguntas bem pessoais!
Mamãe mentia em boa parte deles por achar que isso feria
nosso direito de privacidade, mas se dizia satisfeita com as melhorias
acrescentadas na grade curricular, nessa tentativa de abrangência do aluno em
todos ambientes aos quais faz parte, e a aquela celebrada novidade do
acompanhamento psicossocial de toda criança, ao invés de apenas casos
especiais.
Naquele dia as lições foram bem turbulentas, mesmo para um
curioso garoto de onze anos; sendo que o som das brocas dos instaladores de
câmeras e sensores emocionais forçava à gritaria a orientadora; o pó fino forrando
o soalho, e pedaços de teto desabando sobre minha cabeça me fizeram saltar umas
duas cadeiras e entabular uma conversa com o grupo de simpáticos dispersos da
classe, desistindo assim das explicações sobre a obrigatoriedade dos novos
aparelhos tomográficos em toda a população, e a pandemia de câncer que
acompanhava aquela nova Revolução Industrial!
Abri uma caixinha de leite, ofereci à todos, e, ligando
inconscientemente aqueles fragmentos didáticos da aula com uma observação de
mais de uma vintena de cabeças nuas, (e alguns milhões extras de recentes
tosados no mundo exterior) pela primeira vez notei que estávamos todos morrendo
muito rápido.
Questionei-me se havia adoecido, fazia parte de uma
tentativa de colaboração e solidariedade em esconder a desgraça alheia, ou era
verdade todas aquelas baboseiras à respeito de piolhos. Perguntei a minha mãe,
e ela ficou muito zangada!
Disse que era exatamente por isso que não me poderia me
enviar para uma boa faculdade; pois gastavam grande parte do ordenado de ambos
em alimentos, eletrônicos e qualquer coisa que constasse de um selo de
indicação de que era livre de contaminações bacteriológicas, resíduos
industriais e qualquer tipo de radiação nociva!Não, eu não estava doente, e ela
assegurava isso me lembrando de quantos exames todos nós havíamos feito nesses
últimos anos.
E eu acreditei nela... Ou acho.
Tempos depois e aquela velha novidade de digitalização de
pessoas já começava a se popularizar, e alguns artistas encomendavam sua versão
de mundo, se preparando para alguma eventualidade; além de surgirem, anunciados
nas mídias, propostas de condomínios exclusivos inteiros para pessoas
selecionadas, os quais estariam à disposição por alguns milhares de créditos,
enquanto o governo, com seus problemas de saúde pública aumentando
exponencialmente, procurava estatizar e organizar essa transição caótica e
evitar a falência das transnacionais por conta de tantos processos. Ainda
assim, o Estado Mundial carecia de lisura em se tratando de sua nova
abrangência, já que parecia, aos olhos de todos, que os bens e produção estavam
sendo desviados para algum fim escuso e não declarado!
Disseram que seria necessária a mudança do meio circulante,
e que organizariam cooperativas de trabalho estatais para assimilar essa nova
leva de desempregados, e deslocar para perto dos moradores seus postos de
serviço a fim de diminuir gastos desnecessários com locomoção; o que protegeria
ainda mais nossas reservas de combustíveis fósseis, que parecia minguar a cada
ano!
A vida continuava sua mudança gradual para mim. Acho que
pela plasticidade da juventude tudo se tornava meio normal logo que deixava de
ser interessante nas conversas com os amigos, mas notava que minhas caminhadas
para qualquer parte me cansavam um bocado, e os ossos latejavam por dentro da
pele. Fora, o ambiente ameaçava com um céu se que mantinha fortemente
acinzentados de poluição dias à fio.
Gostava de notar as pessoas vestindo engraçadas máscaras
descartáveis por conta do chumbo das emissões dos automóveis, e que outros
preferiam parodiar a situação com aquelas com filtros enormes, de desenho
apocalíptico!
Outra coisa interessante era que os velórios deixaram de me
incomodar pela perda, mas ainda me angustiavam pelo tédio de não sentir mais
pena, e freqüência com as quais minha família era convidada.
Eram sempre figuras muito parecidas, todas calvas,
esqueléticas, ulceradas, de veias expostas e olhos saltando das órbitas!O
cheiro de flores me enjoava terrivelmente, então eu procurava fora as figuras
mais animadas da vigília para escutar alguma anedota, ou corria atrás de algum
petisco confiável, já que minha mãe não me deixava comer as mesmas porcarias
próprias dos adolescentes, antes, continuava a burlar as entregas de ração e
nos comprava comida saudável, por preços ainda mais exorbitantes!
Aos quinze a morte me deixou de ser coisa banal novamente; e
eu me vi ali, comovido com as mesmas características impressas no corpo e face
de meu pai, as quais costumava a debochar, e abraçava sentido a namoradinha
também chorosa, só a abandonando-a quando insisti em segurar uma das alças do
leve caixão, que agora era um padrão cedido pelas prefeituras para evitar
aquelas conversas sentimentais de donos de funerárias, e assim transformar a
morte num processo mais impessoal, ao tempo que fingiam compartilhar da dor e
tomavam uma pequena parcela da responsabilidade sobre si, mantendo numa boa
perspectiva quanto à opinião pública!Funcionava bem com os outros!Mas eu
continuava amargurado e descia a ruazinha do cemitério tropeçando nas pedras
soltas do pavimento e me lembrando que escavavam em algum lugar da América do
Sul um berço para um Éden virtual baseado naqueles modelos prévios de doentes,
prisioneiros, artistas e milionários!
A contaminação do solo, da águas, e ar vitimava agora mais
pessoas do que o Governo gostaria, e ainda haviam menos faixas cultiváveis do
que as necessárias, sendo assim sensato solucionar de alguma forma aquele
morticínio!
Disseram que haveria uma resposta, e lugar para todos!
A TV dizia que aquela construção subterrânea fora executada
em uma zona de baixo impacto sísmico, encapsulada por um leito rochoso, que foi
convertido em uma abóbada reforçada por paredes impermeabilizantes,
bloqueadores elétricos e geradores de vácuo. Sua localização era desconhecida,
sendo alcançada por alguns túneis de manutenção com acessos restritos a membros
das Organizações Mundiais, e seus técnicos, e tudo isso levava àquele bloco de
oito quilômetros quadrados de tecnologia neuromórfica, com componentes de
altíssima duração e seus ambientes inteligentes e adaptáveis, alimentados por
bilhares de tentáculos de captação e conversão de hidrogênio.
Continua...
Anderson Dias Cardoso.
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