domingo, 16 de março de 2014

Êxodo Digital-Parte 1.



À vista daquelas águias subindo às estrelas, deixando atrás de si uma quilométrica cauda gasosa muito branca, transmitidas sob filtros de opiniões técnicas respeitáveis, louvores dos barões das comunicações e uma tímida comemoração do governo por mais aquela parceria que supostamente resolveria gargalos de transmissão de dados; ampliaria coberturas e melhoraria o tráfego na Hiper-Rede, acabava por se tornar um espetáculo indispensável aos olhos, e um certo orgulho induzido aos corações da nossa raça pioneira, que agora colonizava mais algumas polegadas de infinito para o bem do progresso da espécie!
Meu pai, no entanto, não se deixava comover, antes, se queixava da irresponsabilidade política, que desperdiçava recursos públicos quando quase um terço da população (inclusive ele) amargava o desemprego, e uma parcela ainda maior beirava a miséria.
Ficou mais irritado ainda, um pouco depois, quando foram vazadas informações de que aquele projeto bilionário não diminuiria em nenhum centavo, ou aumentaria em qualquer bit nosso serviço de internet; já que diziam se tratar de scanners de superfície e coisas do gênero.
Houveram desculpas televisivas muito bem encenadas, e promessas de que se esforçariam mais na criação de vagas de emprego, e num par de semanas ele foi contratado como catalogador de espécies, (tendo em vista seu bacharelado em biologia) sendo enviado a campo em semanas alternadas.
Tudo agora parecia muito urgente, e mágico; como se nos fosse necessário e interessante solver todas questões e problemas do universo num par de anos!
Enchemos de sondas os mares, mapeamos e resgatamos, mesmo em laboratório, todas as estruturas baseadas em carbono (já que à essa altura estimava se que mais de dois terços da fauna e flora conhecida havia desaparecido por conta de aventuras industriais, acumulo de detritos e intervenções no meio ambiente), localizamos cada átomo em nosso espaço imediato, simulamos possibilidades de realidade, passamos a conviver com estudos comportamentais, experimentamos drogas para alteração fisiológica...
Nada além do conhecimento era sagrado!
Naquela época os armazéns recomeçaram a oferecer umas poucas marcas novas de alimentos, com embalagens de fibras biodegradáveis, mas nada convencia de que seria possível, depois do pico de consumo à mais ou menos duas décadas atrás, dispor de tanta variedade de descartáveis, e bens de média duração.
Lembro-me de uma ocasião, como naqueles episódios de delírio antes do sono, de que meu pai surgiu na rua imunda como um daqueles gigantes que costumavam dar ordens aos pequenos; voltando sorridente não sei de onde com uma carcaça de um CPU trazida num abraço, e ele me chamava duma daquelas pilhas de lixo as quais eu brincava com outras crianças e me disse que aquilo era para concertar o outro; mas eu nem sabia ou queria saber do que se tratava; era apenas uma criancinha suja que queira voltar e ver outros garotos rolarem ladeira abaixo em carcaças de pneu!
O milagre e a satisfação do homem eram, porém justificada pela sua primeira incursão no mercado negro de peças usadas, a qual fora bem sucedida e prazerosamente arriscada, tendo em vista que os Fiscais de Consumo andavam rondando aquelas vizinhanças, às vezes agredindo, confiscando produtos e ajudando a inflacionar intencionalmente o mercado!
Numa conversa muito posterior, quando mencionei o episódio ele disse que lhe haviam oferecido uns certos implantes neurais por uma quantidade de dinheiro a qual ele não dispunha, mas a tal coisa ainda era muito tosca, com efeitos alucinatórios e de estímulo emocional pouco convincentes mesmo nas amostras de apresentação; além de lhe parecer um tanto arriscado ser operado por cirurgiões não credenciados, residentes em bairros de má fama!
Ficou feliz quando o noticiário anunciou que havia esforços discretos do Governo Mundial em produzir um espaço virtual para o encarceramento de prisioneiros de alta periculosidade, penas perpétuas e execuções; como uma resposta mais humana e possibilidades de extrapolação de utilidades e barateamento de custos!
Ele disse que aquilo seria o futuro, e aumentou o volume para se informar melhor do assunto.
-Mas o corpo não será morto?-Indagou uma provocativa repórter aos idealizadores do projeto, e estes apresentaram uma mesa cheia de estatísticas hipotéticas e provas interessantes de quer realmente era possível uma migração da alma para aquele simulacro de vida, sem qualquer perda de dados ou características.
-Papéis não provam coisa nenhuma!-Desafiou a profissional, com voz firme e zombeteira!
-E é por isso que nosso grupo experimental foi basicamente de doentes terminais, os quais estavam dispostos a arriscar alguma opção que não uma imediata eutanásia!Seus parentes assinaram as papeladas, e ao se realizar todo esse processo eles puderam, e podem manter contato e interagir com seu antigo enfermo à partir de um protocolo de acesso que os direciona a um pequeno universo restrito compartilhado por esse especial grupo de pessoas!Confesso que fiquei muito emocionado ao ver que as famílias testavam a alma dos nossos inquilinos com detalhes muito particulares de seus passados, e as respostas não puderam deixar ninguém confundido!
-Mas essas pessoas se tornaram apenas fantasmas para suas famílias!Não existe mais um contato físico... -Interferiu uma outra voz naquela salinha abarrotada e quente, mas não houve tempo de concluir sua sentença e o homem já sorria como aqueles que antevêem qualquer pergunta:
-Isso minha filha, é só por pouco tempo... Por muito pouco tempo!




Anderson Dias Cardoso.

Um comentário:

Célia disse...

Já li antes e mais uma vez agora! Parabéns sempre!

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