Ia consultando os avisos fosforescentes, mas estes indicavam
que o lugar ainda lhe custaria vários minutos naquele caminhar torto de álcool,
e pesado de cansaço, foi quando ouviu atrás de si passos corridos e até
tropeçados que lhe pareceram ser de outra criança.
Segurou no bolso o estilete e prendeu o fôlego pensando tensamente que, se atacado, qual lugar
devia tentar ferir pra depois arriscar um pique.
-Espere!-Pelo tom, era a mulher do bar; continuou apertando
o instrumento na mão.
-Vai embora, ou eu chamo a
polícia!
-Por favor, faça amor comigo!-A voz havia se modificado em
um arranhar angustiado na garganta, e acompanhado por um leve avançar em
direção da luz. Sua boca triturada, o nariz esmagado e as faces pintadas por
diversos hematomas.
-Sai daqui vagabunda!-rosnou inclinando o corpo para
adiante, ameaçando sacar algo do bolso.
-Eu faço barato, e o que você quiser... Por favor moço, eu
preciso do dinheiro- ia tentando desnudar um seio flácido como desesperado
artifício de sedução, mas ele a empurrou com toda força, e lhe exibiu a lâmina
esperando a afastar definitivamente; mas ela havia batido a cabeça na estrutura metálica; zonza e
assustada tocava o sangue e o novo ferimento, soluçando mais alto aquele choro
engasgado!
Ele havia partido e ela ainda não conseguira crédito para
mais que uns poucos minutos de imersão!
Num instante havia sol, nuvens pascindo calmas o horizonte,
a estrada de terra castanha que levava a casinha que cheirava a pão fresco!Ela
subiu os três degraus da escadinha e ouviu a voz amorosa do pai, mas ainda não
podia atender!
Correu para o banho, e à medida que a água quente lha
avermelhava a pele, a esponja lhe arrancava as dolorosas crostas e o nauseante
cheiro de sexo, ela sentia seus seios minguarem, seus pêlos sumirem foi quando
abriu a porta para encontrar se com quem a esperava, e já nem mais era uma
mulher!
Secou os pés ajustou o vestidinho de renda, sorriu com o
canto são da boca e partiu ligeira para perto da lareira, para seu colo dileto!
-Oh!Minha pequena!Onde machucastes esta tua boquinha?-A voz
do homem era grave e terna; na verdade lhe adoecia de amor ouvi-la, ainda que o
rosto anuviado de sonho não a deixava enxergar seus olhos!
-E... Eu caí enquanto apanhava algumas frutas!-A voz vacilou
aquela mentira. Não arriscava nada mais elaborado por medo que tantos detalhes
lhe traíssem a dissimulação.
-Deixa eu te limpar!-Estendeu para a boquinha amassada um
lenço cheirando lavanda e roçou o levemente sobre a ferida-Tens que tomar mais
cuidado com tuas travessuras!
-Brincaste com os garotos da vizinha?
-Eles são meninos... Eu não gosto de meninos, eles sempre me
machucam...
-Eu também sou um menino!-Sorriu comprimindo-a contra o
peito, da forma como a costumava fazê-la adormecer.
-Não... Você é só uma mentira a qual eu pago com meu corpo,
e que me faz recordar um passado que acho que uma vez vivi, mas hoje em dia nem
tenho mais tanta certeza...-falou naquela língua que inventara para si, e que
era exercitada em voz baixa para que nunca percebessem o quanto era infeliz!
-Tua mãe está a assar um daqueles deliciosos pães, veja que
ela passa pela porta da cozinha neste instante, e veste aquele avental florido
que você elogiou outro dia!
-Não!!!-A garotinha
gritou- Eu diga pra ela ir embora daqui!Embora dessa casa!
-Por que não vai até a cozinha, vocês fazem as pazes e você
aproveita a caminhada para me trazer uma xícara de café?
-Não!Não!Não!...............Ela não é mais minha mãe!E. Ela
cheira legumes apodrecidos, faz caretas, fala de trás pra frente e anda com o
quadril virado para as costas...Ela não é minha mãe!
-Ela só está tendo uma semana difícil!Olha ela ali!Está
trazendo um pãozinho com uma barrinha de manteiga, e uma caneca bem grande de
achocolatado!-E a sombra da mulher arrastava uns passos estranhos, de animal
quebrado, e se aproximando de pai e filha notou um rosto torcido, a boca
parecendo sempre dizer algo, com toda a extensão possível às palavras e olhos
dançantes em suas órbitas.
-Diga um olá pra sua filhinha amada, meu amor!
-Uishhhhhhhhhshhsihauuuuuurrrr!
-Ahhhhhhhhh!Gritou a pequena, tentando se meter em alguma
abertura da camisa do pai, ao tempo que as pernas chutavam convulsivamente os
lados procurando afastar a desagradável
figura.
-Não se debata tanto, que assim não consigo segurar caneca e
pão!E além do mais estás a ser mal educada com sua mãe que passou tanto tempo
na cozinha pra preparar algo gostoso pra sua princesa!
A voz possuía lá suas qualidades persuasivas, a garota foi
se desvirando de seu avesso físico-sentimental com as contorções semelhantes a
um tímido pequeno verme, e logo se via sentada em uma posição comportada e
submissa, com os olhos fixos nos pés dela, que apontavam uma posição
impossível!
-Shiiiiiiiiaaaaaaaaaaauuuuuuuuuuuuuuuuunnnnnnnnn-aaaaammmmmmmmmu!-
ousou encarar o rosto do monstro que lhe falava, e viu que a boca continuava
aqueles movimentos caricatos de conversa, ao tempo que lhe parecia esboçar um
sorriso vertical!Ela estendeu-lhe o pão, e a caneca, e, com a fome incomodando
tanto o estômago resolveu tentar engolir algum bocado.
Apanhou-os, mastigou um pedaço com a dificuldade de quem
estivera já alguns dias sem comer, mas a boca se encheu de vômito, enquanto os
olhos se embaciavam pelas contrações do asco!
-Isso... Isso é carne crua!Carne crua... Saia daqui seu
demônio!Eu odeio você!Eu odeio você!
-Calma minha filhinha!Isso é pão!É pão!Olhe!-E o homem
rasgou um pedaço da massa branca ainda quente e o consumiu com um gole de leite
e um sorriso conciliador.
-Saia daqui... Eu tenho medo dela, papai!Manda ela ir embora
dessa casa!-Sem que a criança visse, o homem olhou ternamente para a criatura,
e ela balançou sua cabeça virou-se e se afastou com aqueles mesmos passos tortos.
Ninguém notou, que também chorava!
Ambos estreitaram um forte abraço, e, não sabia se por conta
da lareira, ela suava profusamente; e pensava se daqui alguns minutos, quando
seus créditos acabassem o SAC da divisão estatal de realidade virtual
resolveria o tipo de reclamações que iria fazer!
Anderson Dias Cardoso.
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