sábado, 10 de setembro de 2011

O Avesso de Kafka.


á havia notado mudanças e escamações discretas, higiene deficiente e preferências alimentares exoticamente repulsivas. Seus odores me eram agora estranhos e passei a repelí-los ainda com coração doente de remorso.
Das tarefas domesticas antes feitas por outrem; mas que me diziam respeito, preferi executá-las por mim mesmo e passei a abusar de atos assépticos ostensivos, o que causava prantos escondidos e algumas confusões um tanto sentimentais.
Sentava-me à TV e seu reflexo me apresentava mais que a programação rotineira. Lá, no outro sofá se acomodavam três figuras desconfortáveis aos sentidos.
Vez em quando o ranger de suas articulações me causavam ojeriza, mas o afeto e a educação recebida me impediam a língua, e eu não protestava; contudo as atitudes submissas decorrentes de sua condição estranha eram recebidas com voz bruta, e às vezes palavrões.
Na cozinha salpicos de quitina forravam os pratos. Eu me recusava à comer e me voltava aos enlatados e biscoitos. Minha mãe chorava enquanto lhe restavam glândulas lacrimais; não por se enojar daquilo em que se transformara, mas pelas atitudes de seu primogênito.
Os cosméticos não salvaram a aparência de minha irmã, e pouco além de cremes aderiam à carapaça que se formava nas faces. Ela recortava rostos bonitos e os vestia para se consolar em sonhos, de sua monstruosidade.
O emprego de papai resistiu por algum tempo, por conta da piedade dos contratantes, mas outros contratados ameaçaram partir e ainda processar-lhes por fazê-los compartilhar um ambiente insalubre com um contaminado por uma doença desconhecida.
O fundo de garantia e o seguro nos ofereceram uns poucos dias de dignidade, mas ao nos apertar o orçamento eu já não ousava desperdiçar tostões com água sanitária ou produtos de limpeza.
Com a fome, a repulsa de um estômago fragilizado pelo vazio me levou ao ódio, e logo, ao conformismo e eu os via caminhar pela casa com indiferença.
Lhes servia as sobras mendigadas e lhes negava palavras.
Vez ou outra sentava no sofá vermelho carcomido, mãos ao queixo, notando os movimentos daqueles corpos chatos se arrastando pela sala poeirenta, e se se achegavam à mim os chutava levemente o dorso para que fossem se esconder embaixo de algum móvel.
 Conhecia-lhes bem e a contragosto todos seus hábitos imundos, mas não os lembrava sendo família.
No auge de minha angústia procurei por mudança. Me negaram emprego afirmando falta de qualificação, mas a verdade diziam de minhas relações familiares; então me mantive miserável por muito tempo, me submetendo à dieta de meus pais...
Fugi de casa... Me recusei a receber notícias
Hoje vivo de esgotos e suas pragas; conhecendo como poucos a psicologia dos insetos;  munido de preparados derivados de conhecimento de causa, realizo um serviço barato e eficiente, e na morte de cada um me pergunto quem estou matando; se mamãe, papai ou minha irmã.

Anderson Dias Cardoso.

2 comentários:

JGRFerreira disse...

Espetacular! Uma releitura simples e ao mesmo tempo inteligente do clássico de Kafka! Se me permite, também tive uma ideia a respeito, estou pensando em escrevê-la...! Parabéns e uma boa semana!

Célia Ramos disse...

Muito bom texto!!! Às vezes nos vemos com algo repulsivo ou pessoas se tornam repulsivas para nós!
Não nos adaptamos a certos ambientes e vice-versa! E isso também pode nos fazer sentir culpa ou não! Enfim! de certa forma, no meio social, às vezes nos sentimos minúsculos! (Acho que to falando de mim! rsrs)

abraço!

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