Já se arrumando sentia o forte cheiro de café, e descendo rapidamente a escadaria já via o casal amado na mesa posta aguardando sua passagem.
Com pedaço de queijo entre os dentes perguntou sobre a ausência do irmão e este surgia como uma aparição desgrenhada vindo da sala após um dos ataques de cinefilia que o acometia vez em quando. A manhã estava calma, sem olhares preocupados.
Das figuras uma outra se aproximou com passos surdos, e o apressou com os olhos tristes e não notando intenção de deixar o amanteigado e leite tentou o arrastar pelo pulso, o que espantou o trio.
-Me largue!Ainda não acabou!
-Quem está ai?-A mãe já se desesperava.
-Meu filho... Você tem que se tratar- Agora, com o pai eram duas forças o disputavam enquanto o irmão aborrecido arrastava sua cadeira e deixava o ambiente atribulado levando um pãozinho e uma xícara de chá.
-Está armado o circulo dos malucos!-A porta da sala fechou o restante do monólogo e o controle fez gritar a TV. Aquela briga não mais o pertencia.
A tensão foi diminuindo com o conformismo, e com as explicações e o jovem conseguiu se afastar dos gritos da mãe e do abraço do pai, que o retinha impedindo que alcançasse a porta, e num desmaio manjado o pai desviou seu cuidado para a mãe e ele escapou ainda os consolando à distância, e a segunda porta se fechou.
As mãos o sacudiram violentamente, e quando o viraram ele esteve fitando aqueles olhos envelhecidos de amargura, e falando o hálito o embrulhou o estômago e a náusea o distraiu daquilo que havia dito. Procurou se afastar e se reorganizar para então enfrentar os insultos.
-Quando essa loucura ira acabar???-O jovem melancólico distanciou-se dois passos- Estão destruindo sua vida!
-Vamos andando, tenho que ver Jéssica. - O agredido tomou o caminho contrário evitando o olhar pesado e logo o foi seguido pelo ser murmurante, mas ignorou a maioria das reclamações.
Soou a campainha e esperou oito costumeiros minutos; tempo mínimo às vaidades da beleza, que surgiu anunciada por um perfume fresco e adornada por um sorriso autêntico, branco e harmonioso. Houve um abraço tenso e a moça decodificou toda a situação.
-Vamos entrar!-Deslizou sua mão à dele e o tracionou rumo à casa, mas ele resistiu.
-Não posso! Não o quero deixar aqui fora... Ele é meu amigo!
-Ele não existe!
-Você não entende!Ele está aqui ao meu lado... -As mãos cerraram os ouvidos, e o sangue ruborizou as faces e ela tentou fugir da loucura mas quando os lábios acariciaram a testa o amor a enterneceu e ela o abraçou novamente. Agora os corpos se esqueceram de qualquer ameaça e gozaram do calor e afeto um do outro, mas foi gozo breve, pois o olhar descontente do amigo o irritou, e ele preferiu entabular logo uma conversa, contando amenidades e tentando uma distração para ambos com estórias divertidas.
O itinerário, deixada a namorada, foi uma seqüência quase agradável de visitas das quais a segunda foi na casa dos avôs.
Eles, já acostumados com a presença invisível do amigo esperavam alguns segundos antes de fechar a porta. Tentavam ser corteses, mas com ar sempre descrente. Serviam dois pratos, dois copos e o participavam das conversas da família, mas ele permanecia encostado à parede da sala de jantar, com olhos raivosos esperando para deixarem aquele ambiente hipócrita.
Na casa de seu melhor amigo apanhou uma apostila e preferiu deixar incógnito seu acompanhante, e após cinco minutos de prosa já rumava para outra visita.
A “Casa” era o ambiente para se sentir tranqüilo. Tudo era performance, e as maiores esquisitices eram permitidas.
Moveu as cortinas pesadas e ao se mostrar foi saudado com sorrisos, e “brincou” apresentando seu amigo invisível a toda trupe e eles se riram lembrando-se daquela brincadeira e saudaram o espaço vazio, e beijaram a face do nada e convidaram o “delírio” a se sentar na roda. Ele não riu das simpáticas brincadeiras.
O ensaio da peça se desenvolveu até a cena do escândalo da mulher traída, e quando a arma apontou o coração do jovem como vingança a voz do amigo antecedeu o grito da morte.
-Eu não agüento mais!Esmurrou duas... três vezes a boca do jovem; até que viu o sangue manchar os dentes.
-Alguém me ajude!-O círculo se mantinha distante ao embate, observando o espancamento.
O amigo o sacudia violentamente, e gritava maldições ao moço confuso.
-Socorro!Ele vai me matar!- O grupo continuava assistindo, sem esboçar reação.
A cabeça se chocou com o encerado, o ar começava a fugir dos pulmões e ao fixar os olhos, viu o círculo de amigos se desfazerem no ar enquanto a fúria do amigo se tornava em lágrimas.
O peso do moço era o inverso da agressão, e a voz possante diminuiu a um cicio triste.
-Sua loucura está destruindo minha vida!
A exclamação abriu-lhe os olhos, e viu que não era um teatro, mas um barraco quase destelhado e toda uma imagem de miséria.
Não haviam pais, avós, namorada ou amigos...
Havia um paupérrimo irmão cuidando de um louco às custas de doções.
Anderson Dias Cardoso.
Um comentário:
Surpreendente como sempre.
Um beijo!
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