Ao
todo, cinqüenta e quatro cães, convivendo e interagindo numa área remota,
capitaneados por um homem o qual, por alguma razão, se esquecera de seu passado
e havia adotado um nome qualquer. Ele os sustentava com um preparo à base do trigo
plantado para si, e também para pequenos escambos realizados nas cidades
circunvizinhas; e da carne de animais encontrados mortos nas rodovias, sejam
pelas apressadas rodas dos automóveis, ou pelo chumbo das armas de caçadores
eventuais.
A
vida dos moradores do lugar; homem e cães, seguia sem qualquer arroubo, entre
ciclos de trabalho pesado do primeiro, e o cio disputado das cadelas, que
multiplicavam seus filhotes.
Tais
eventos continuariam da mesma forma, até que do velho não restasse forças para
arar a terra e coletar carcaças para alimentar seus amigos, ou que sua vida se
esticasse ao seu termo. Então, haveria luto enquanto restasse vasilha cheia de
ração, e seu sangue coagulado e os aromas de fermentação de seu estômago não
houvessem escapado pela garganta e poros.
Daí
para frente o banquete seria outro, se iniciando no corpo do dono, e passando
do animal mais fraco ao mais forte, de acordo com a necessidade e oportunidade,
até que a fome, o estresse e solidão, levariam em ciranda o ultimo cão.
Mas
tal futuro, de forma alguma, o incomodava. Quando acontecesse, seria como se
houvesse se despido de um desconfortável "terno de carne", para viver
sua liberdade em outra forma. Que lhe fizessem como seus primos, os lobos, e
aproveitassem suas fibras e ossos antes de atacarem uns aos outros.
Aconteceu
que, num daqueles dias ouviu um forte movimento enquanto avistava ao longe a
assustadora nuvem de pó sendo trazida pelo que parecia imensa caravana de
carros, camionetes e trailers. Os cães se agitavam, mordendo-se uns aos outros,
ganindo e rosnando quando da aproximação dos invasores.
O
esforço para empurrar os animais para dentro da construção lhe rendeu alguns
ferimentos de unhas e dentes. A casa era miúda. Três peças, sendo o banheiro
afastado uns oito metros dalí. Lugar imundo e maltratado, cujo os cheiros
nauseabundos exalados alcançavam, nos dias mais quentes, cozinha e quarto.
Uma
vez acomodados, mas ainda muito agitados, passou a contar as cabeças, chamando
cada um por nome os vendo, um a um, serem despertos e re-imergirem naquele
frenesi logo que a voz perguntava pelo próximo animal. Constatada a presença de
todos, começou uma cantoria baixa e monótona, à qual bicharada foi se
aquietando paulatinamente até que o casebre se viu todo coberto por um tapete
irregular e multicolorido de pelos.
O
velho foi até a veneziana, esfregou o vidro com as mangas da camisa de flanela
e viu todo aquele tumulto se organizando em um acampamento improvisado. Estacas
foram fincadas, lonas estendidas, e com o cair da noite a iluminação ficou por
conta de pequenas fogueiras, lampiões a gás e lâmpadas incandescentes ligadas
em algumas baterias automotivas. O cheiro das panelas de seus recentes vizinhos
não pediu licença, porém, infelizmente, os odores da casa, das fezes e os desprendidos
do couro carcomido pela sarna de Augusto, Camilo, Bartolomeu e o velho Menelau,
não o permitiam sentir prazer nele.
Arrastou
a única cadeira do lugar e sentou-se ali mesmo a esperar que algum dos
invasores viesse se sociabilizar. Por via das dúvidas, empunhava a carabina que
trocara com um viajante por um bom estepe de sua antiga camionete, com a qual
atropelara alguém num momento de bebedeira, em um dia chuvoso. O guarda que o
abordou foi "gentil" em não lhe denunciar o crime, e só lhe cobrou o
veículo e tudo o que levava na carteira. A autoridade o deixou em casa, cabeça
esmagada e minando sangue, insistindo que ficasse com pneu como símbolo de boa
vontade, e lembrete de que devia ser mais cauteloso com bebidas e direção.
Alguém
finalmente se aproximava. Um pequeno grupo, com uma lanterna segura pelas mãos
de uma miúda, e uma panela bem bojuda, que comportaria uns cinco litros,
envolvida por um tecido grosso, trazida por um sujeito alto, magro e com cara
de bobalhão. A mulher seguia ao lado, carregando pão e uma garrafa de vinho.
Agostinho
começou a se agitar, Hipólita raspava o soalho com suas unhas, Creso rosnava e
expunha suas presas quebradas. Talvez fosse melhor que não atendesse a porta.
"Novamente
um Esaú venderá seus direitos por um prato de lentilhas", sussurrou
Camilo, o animal de pelos castanhos, não se importando com a surpresa do homem.
A
porta recebeu tímidas batidas no início, porém ele ainda tentava engolir, com
garganta seca, mais aquela estranheza. Os visitantes insistiram, agora
surrando-a para se fazerem notados. Os cães ladravam, arranhavam paredes e
móveis, e o velho esperava que fossem embora, porém eles já o observavam
através das persianas, e diziam animados que a comida estava a se esfriar.
Camilo havia se virado, agora fazia o caminho contrário aos demais, os clamores
que vinham de fora, e a turbulência no interior do casebre o convenceram que o
melhor era receber a gentileza e despachar os visitantes.
Os
invasores se apresentaram alegremente como Samuel, Wanda e obrigaram a pequena
a apertar sua enrugada e calejada mão, gesto executado certamente a contra
gosto. Seu nome era Dulce, e isso soou aos seus ouvidos como seu significado, a
despeito da repulsa visível da garotinha. Foi aí que ele encostou a arma numa
das pilastras do alpendre.
Estenderam-lhe
a sopa, o vinho e o tranqüilizaram dizendo que a caravana estava ali para
assistir a um evento astronômico raro, ao qual nem se importou em saber do que
se tratava, mas ousou perguntar quando partiriam o que se daria dentro de uns
dois meses e meio, tudo notificado, regularizado perante as autoridades locais
e impossível de que tentasse qualquer tipo de recurso para antecipar a
despedida daqueles estranhos.
Viu
que eles haviam descarregado alguns telescópios, estruturas que certamente
seriam antenas, e uma ou duas TVs de tubo brilhavam sobre mesas plásticas.
Alguns perambulavam pelo acampamento, seja terminando de ajeitar o que ainda se
encontrava fora do lugar, seja proseando sobre algum assunto em pequenas e
animadas rodas.
Os
cães haviam silenciado logo que cerrou a porta, e ele, depois de depositar num
banco improvisado a comida que recebera; por cortesia, os convidou a
partilharem o alimento. Estes assentiram, e ele os deixou, indo apanhar os
engordurados pratos de ferro esmaltado e os copos plásticos os quais tinha
impressão de terem sido adquiridos em uma feirinha de beira de estrada, não
muito tempo depois do acidente.
Forçou
a porta, e lhe parecia haver uma tonelada de corpos barrando sua abertura.
Gritou alguns palavrões, sem se preocupar em se desculpar com seus agora
convidados, desaparecendo logo em seguida dentro daquele precário lugar.
Limpou
o exterior dos recipientes com um pouco de aguardente, apanhou colheres,
adicionou mais dois pães dormidos à conta, e amarrou tudo e um lençol, com o
qual pretendia forrar o lugar onde se encontrava os alimentos. Voltaria para
pegar a cadeira, e três caixotes para compor a mesa de jantar. Andou o percurso
entre a cozinha e a sala chutando alguns dos companheiros. Eles o farejavam e
saltavam sobre seu corpo, aparentemente tentando lhe arrancar os aparelhos de
sua mão, e iam ficando mais agressivos à medida que se aproximava da porta.
Xingava baixinho os patrocinadores daquela confusão toda, ainda que tentassem
lhe ser simpáticos de alguma forma, excetuando de suas pragas, é claro, a
garotinha.
O
velho segurou com um só braço a matula que levava, e abriu cuidadosamente a
porta. Venceu alguns cães que se embolavam em sua perna direita, porém falhou
em mover seu contrapé. Os outros forçavam passagem, e o corpo veio ao chão. A
matilha raivosa se projetou sobre a mesa improvisada, derrubando o alimento e o
vinho, atacando casal e filha.
Entre
gritos, pedidos de socorro, espasmos tentando afastar tantas feras, e golpes
desesperados no ar, o velho correu em busca da carabina, e foi abatendo quantos
amigos fossem necessários para evitar que todos eles fossem mortos pela revolta
dos que, do acampamento, certamente assistiam a violência daquela cena. Já
percebia algumas pessoas do acampamento se movendo naquela direção.
Embora
muito feridos, os pais foram carregados ao arraial com vida. Não houve ameaça,
agressão ou qualquer manifestação de ira por parte daquele povo; talvez porque
a garotinha, curiosamente, não sofrera sequer um arranhão.
O
resto da noite foi só tristeza e medo. Enterrou Claus, o pastor alemão, único
com algum pedigree naquele lugar, e os vira-latas Alcides, Caio Bonifácio, Luna
e Valquíria. A arma estava às costas enquanto cavava, e os bichos o encaravam
confusos; menos Camilo, que já não lhe fitava mais os olhos.
Depois
de seus serviços, achou por bem recolher novamente os cães ao aperto do
barraco. Esperou de olhos abertos noite inteira pela reação dos homens. Seria
muito fácil que lançassem gasolina, e queimassem-nos, casa dono e animais de
uma só vez, e ele não faria o menor esforço para salvar-se, ou algum de seus
amigos.
A
noite não passava, e nunca mais passou. Ergueu-se da cama, febril e com o
estômago se contorcendo em náuseas, ao ouvir a movimentação dos motores lá fora.
Notou que alguns deles haviam abandonado seu lugar original, se distribuindo em
cerco em torno da construção. Os automóveis agora estavam de forma que os
faróis iluminavam a casa, e as pessoas se mantinham distribuídas ao longo do
círculo, conversando entre si em pequenos grupos, vez ou outra olhando e
apontando para aquele lugar.
Às
vezes ouvia gritos e vozes, mas nunca os conseguia discernir. Cães uivavam de
volta, babavam-se e rosnavam ao menor ruído. Era questão de tempo que os
matassem.
No
terceiro dia o sol também não havia nascido. Sentia fome, e comeu o que
encontrou, já que não havia feito as despesas da casa naquela semana. Esvaziou
o penúltimo saco de ração em suas panelas, e vasilhas improvisadas. Os cães
comeram a se fartar, e ele pensou em distribuir porções menores da próxima vez,
pondo se a imaginar como se arranjariam dali para frente.
No
sexto dia o acampamento recebeu a visita do carro funerário, o qual viu sendo
carregado com dois corpos. Tudo ocorreu muito rápido, e fora do foco dos
faróis, então não pôde identificar se haviam sido Samuel e Wanda; porém suas
suspeitas se confirmaram quando viu a garotinha Dulce sendo levada pelas mãos
de um outro casal, passando a brincar, se vestir e se comportar como as gêmeas
daquela família, dali em diante.
A
situação continuava da mesma forma, com a mesma noite eterna, os olhares,
gritos, o frenesi dos cães e o medo. Não um medo comum, já que não temia ser
morto naquele lugar; mas algo paradoxal, que o impedia de sair da casa. Talvez
estivesse sofrendo de "síndrome do pânico", ou coisa semelhante.
Uma
semana e meia, e acabara, junto com os cães, o saco restante de ração. Havia
regrado como podia, a umedecendo com água, (menos a parte que lhe cabia) e
entregando porções cada vez menores, mas agora não havia nada mais a se fazer.
Três
dias depois e Camilo finalmente resolveu se aproximar. Certamente ele delirava
de fome quando o cão insinuou que era melhor que comessem alguns de seus
irmãos. O velho chorou, e suportou sua decisão de morrer faminto por mais dois
dias.
Quando
os cozinhou, escolheu dentre eles oito, de acordo com os critérios de idade e
apego. Nenhum gemeu sob o cutelo, ainda que olhassem resignados ao seu dono.
Algumas
madeiras foram retiradas para que fosse cavada uma vala para serem enterradas
as vísceras, pelos e ossos dos animais, visto que até a pele foi consumida
entre os esfaimados. A cozedura das carnes não foi sem muita comoção, o sabor
era amargo e desciam ao estômago com calafrios. Alimentar-se-iam novamente
quando a fome lhes fosse insuportável.
Outra
semana e já meio que se habituara àquele pesadelo. As pessoas se alternavam em
vigiar a casa, o tempo continuava escuro e a órfã e suas duas novas irmãs
brincavam com uma réplica da camionete na qual havia se acidentado há alguns
anos, sempre com os olhos voltados para o seu lugar. Naquele dia, a fome lhe
obrigaria a sacrificar animais mais achegados, ainda que ele mesmo resolvera-se
por não mais consumir daquelas carnes. Os demais minguavam por conta da
miséria, e não havia quem se aproximasse para puní-los ou resgatá-los. Ele
mesmo gritara algumas vezes seu desespero, mas, ao que parece, eles faziam-se
de desentendidos.
Um
mês e alguns dias depois, e não havia outro cão senão Camilo. Os demais se
devoraram uns aos outros, restando alguns ossos roídos distribuídos pela casa.
Este veio em um daqueles dias sombrios e se deitou sobre seu colo magro.
-Quando
nós morreremos, Camilo? - Questionou o homem com uma voz sumida.
-Acredito
que não em breve.
-Você
sempre soube das coisas, meu velho amigo... O que aconteceu conosco? - A voz
embargada, a boca seca e os olhos avermelhados, sem que houvesse alguma
lágrima. Seu corpo mirrado podia ser carregado por um adolescente.
-A
porta. Estão batendo novamente, você pode ouvir? Ela veio te visitar outra vez,
e olha só, hoje você está desperto! - e à medida que o cão se levantou para
atendê-la, toda a casa, como num sonho foi se transformando em pó fino,
enquanto um vento muito forte e quente agitava as partículas, lhe arranhando a
pele, e agredindo os pulmões.
-Eu...
Eu não posso respirar - gemeu o velho, com os olhos feridos pela tempestade, e
as mãos tentando cobrir nariz e boca.
-Não
se preocupe você não poderia estar em lugar mais seguro. A mulher encontrava-se
ajoelhada diante de si, num ponto iluminado por não se sabe o que, naquele
deserto infinito que não podia ser enxergado, no entanto, sentido. Quando seus
vermelhos lábios se abriram, a tormenta foi acalmada.
-O
comboio?
-Eles
partiram no dia anterior. Acho que desistiram de ti... Visitantes são um
instituto social curioso. Nem sempre dispensam muita paciência com os
convalescentes, mas tudo se trata de uma
simples obrigação, ou a busca de algum alívio moral...
-Você
deve ser a morte, arriscou o homenzinho. A mulher alisou um vinco em seu vestido
branquíssimo, desfez um cacho de seus longos e negros cabelos e respondeu
amavelmente:
-Não.
Antes, sou a vida, ou melhor, uma projeção bem particular dela. Algo entre um
instinto e sua vontade de ser. Tenho estado por perto, porém afastei-me um pouco
no dia de seu acidente.
-E...
Eu não entendo.
-Não
se aflija, nem me cobre muito, sei somente que sabe, talvez um pouco mais.
Havia filho, nora e neta antes desta segunda tragédia, mas eles lhe eram como
estranhos, pois quando seu crânio foi esmagado, algumas lembranças se perderam.
Enquanto conversamos seu corpo; o nosso corpo, é lavado com panos úmidos e água
morna. Estamos aqui por muito tempo. Há uma sonda trazendo alimento e nos
hidratando, e algumas enfermeiras virão logo para nos mudar de posição, pela
terceira vez neste dia. Ouvi dizer que a fiscalização multou este hospital por
conta de pacientes acometidos por escaras. Mas o motivo de eu estar aqui é
outro:
-Nossa
audição é excelente, e temos escutado muitas coisas nestes dias, ainda que você
não tenha se apercebido disto de forma consciente. Você não foi a única pessoa
da família a ter sofrido um acidente grave, e é claro que sabe disso, mesmo que
tenha lidado com o fato de forma instintiva e não convencional.
Aconteceu
logo após aquela traumática visita, da panela de sopa, pães e garrafa de vinho.
Felizmente, assim como você, sua neta sobreviveu, e se encontra sob os cuidados
de um casal de amigos de seu filho. Talvez seja adotada; então, pare de se
julgar culpado por aquilo que não podia de forma alguma prever ou controlar.
Disseram que o motorista do outro carro havia se embriagado...
-Então
tudo que de estranho que me aconteceu, a casa, os cães... Camilo?
A
cabeça magra do cão acenou afirmativamente - Sim. Cada qual veste suas emoções
com o corpo e forma que lhe convém.
-E...
E agora.
-O
mundo que construiu aqui, e que se apegou por medo e falta de um passado não
existe mais. Você pode se decidir por acordar, ou não.
-E...
Se eu resolver não acordar?
-O
tempo aqui se comporta de forma diferente, e você pode ter uma eternidade até
que resolvam desligar os aparelhos.
Anderson Dias Cardoso.
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