No contrato exigiam que não mantivéssemos qualquer tipo de
contato além do estritamente necessário. Toques, olhares, palavras, sorrisos;
todos regulados detalhadamente, inter e extra muros, por algumas centenas de
linhas , a promessa de um cheque gordo e a ameaças implícitas de acontecimentos
catastróficos em caso de descumprimento.
O prédio era bem bonito, dispunha de oito andares divididos
em pequenas estações com portas sanfonadas, cujo conteúdo só o trabalhador que
a ocupava conhecia. No meu caso, havia uma mesa, computador que periodicamente apresentava
instruções de montagem, um conjunto de peças plásticas delicadíssimas as quais
não era raro se partirem com o manuseio, uma caixa separadora com dezenas de
espaços para o produto concluído, e um som ambiente que alternava entre músicas
agitadas e calmas.
Periodicamente aparecia-me um funcionário de jaleco branco,
crachá com um nome fictício (sabia disto pois o meu dizia José, mas minha
certidão não concordava com isto!), uma prancheta, um par de canetas (vermelha
e preta) penduradas no bolso, e usadas em ocasiões que não me deixava deduzir
nada!
Quando soava a hora do intervalo as pessoas se encontravam
nos corredores estreitos, silenciosas, vagarosas e cabeças meio baixas para
evitar o toque. Havia uma fila para apanhar sanduíches ao gosto, refrigerantes
ou sucos, e sobremesas variadas.O ambiente era muito limpo, e quanto ao sabor,
duvido que alguém reclamasse.Segundo o ritual daquele espaço de tempo a maioria
se encaminhava ao banheiro, onde as latrinas continham uma fita que acusava uma
cor de acordo com as fezes do dia, e que voltava paulatinamente ao branco
depois de cada descarga.
O bebedouro era uma outra parada obrigatória, e sua água
parecia apresentar um gosto levemente diferente das costumeiras águas minerais
do mercado, e uma vez ingeridas, pareciam hidratar e saciar muito bem o corpo,
além de estranhamente me sentir um pouco mais eufórico e desperto depois de um
copo ou dois daquele líquido!
Já de volta ao meu cubículo o serviço seguia monótono, porém
interessante, raramente me trocavam as peças, ou surgia algum “supervisor” com
cara de desagrado. O computador não me oferecia internet, e passou a piscar em
vermelho quando tentei acessar este, ou outro link. Às vezes jurava ter ouvido
cochichos nos corredores, se bem que em certa ocasião o barulho me pareceu
entrecortado e repetitivo... Desconfio ser uma gravação!Será que há câmeras
aqui na minha estação?
Hoje verifiquei meu contracheque. Haviam aumentado muito meu
ordenado, sem qualquer motivo, mas, como o recomendado desde o início, achei
melhor não questionar nada, mas quando cheguei em minha sala haviam retirado a
mesa e o computador, e substituindo as caixas com peças estranhas por palitos
coloridos com um cheiro adocicadamente forte e enjoativo!Ao menos me colocaram
um tapete e uma almofada encardida onde me sentar... Não estou gostando nada
disto!
Os cochichos nos corredores são perturbadores!Às vezes acho
que escuto uma gargalhada entrecortada, mas a sala parece ter sido construída
de modo a não apresentar nenhuma fresta para que eu possa verificar. Nos
intervalos, quando ouso erguer um pouco a cabeça, as pessoas ainda parecem tão
desconhecidas e impessoais quanto sempre!
Parece que recentemente mudaram o fornecedor de água. Esta está
mais densa, com um sabor meio amargoso, e que tenho a impressão de me deixar sonolento.Ultimamente tenho sofrido um leve
formigamento nas pontas dos dedos, e meus cabelos parecem ter se tornado um
pouquinho mais oleosos; mas eu não menciono isso à ninguém!O contrato não
permite!Aliás, estas novas clausulas, estimuladas por outro aumento convincente
(quem hoje em dia ganha tanto pra executar trabalhos tão simples quanto
estes?), nos obriga a disfarçar nosso itinerário através de taxis previamente
remunerados pela empresa, os quais nos buscam em pontos de ônibus aleatórios,
indicados por um SMS enviado antes do expediente; a proibição de qualquer
comentário à respeito de onde, e com que se trabalha, inclusive a intenção de
pesquisa dos próprios funcionários passariam a ser verificadas por um algoritmo
que listava as palavras –chave em todos os níveis da rede, identificava seu IP,
deduzia seus contatos, e finalmente, decifrava o autor!Não sei se isso é
realmente possível, mas temo que estejam nos vigiando de alguma forma!Às vezes
me sinto observado nos lugares mais improváveis!Já ouvi falar de drones,
satélites, escutas; mas o que tenho medo mesmo é do ser humano!Ando vendo
algumas sombras, ouvindo alguns ruídos... Tenho sonhos estranhos!
Esta semana outro aumento. Entregaram em casa um terno de
tecido caro para cada dia da semana.O corte me pareceu sob medida à despeito de
eu não ter oferecido informações do tipo a ninguém, e, curiosamente, quando
cheguei em minha sala haviam retirado o tapete e a almofada.Fiquei em pé por
horas, não queria me sujar naquela poeira fina do ambiente, mas depois das
cãibras me resignei!Naqueles dias o tempo passou mais devagar. Eu consultava o
relógio de minuto à minuto, esperava alguém me trazer o que fazer, ou me
fiscalizar de alguma forma, mas nada acontecia!Vencia meu tempo, eu batia o
ponto e deixava o local por um caminho maluco, e chegava exausto de tensão em
casa!
Como poderia comentar indiretamente o que acontecia
comigo?As pessoas dizem que o dinheiro é chamariz de interesseiros, mas tenho
me tornado um “bem sucedido” tão excêntrico que todos se afastaram por meu
silêncio, e por medo de serem envolvidos em alguma coisa que não acabe bem! Psicólogos
oferecem sigilo profissional, mas eu desconfio de todo mundo!
Outro dia e agora parece que o número de salas foi diminuído
pela metade; isto é, se fundiram de duas em duas, e as estruturas foram
modificadas para acolher uma porta grossa de madeira, uma mesa, e dois blocos
de notas, com suas respectivas canetas!Aquilo parecia alguma pegadinha, então
decidi manter a mesma postura “profissional”, a qual foi imitada pelo parceiro
de sala. Evitávamo-nos no que era possível.Quando um se sentava à mesa, o outro
se encolhia no canto, rosto virado para a porta, e algum gesto que demonstrasse
inquietação.Eu manuseei o bloco e a caneta algumas vezes.A testei na palma da
mão, mas não ousei nada no papel.Meu companheiro a folheou, arrancou uma ou
duas páginas e dobrou barquinhos.Vez em quando algum dos dois assoviava uma
música, mas o outro ficava a se policiar para não repetir o ato, e demonstrar
alguma simpatia, continuidade, ou empatia!No intervalo nos alternávamos meio
que inconscientemente, quinze e quinze minutos.
Um mês depois e estou sozinho novamente. O salário recebeu
novo acréscimo, e a sala foi duplicada, me presentearam com uma poltrona
aveludada vermelha, a qual tinha seu local de permanência marcado no chão,
algumas plantas artificiais enfeitavam o local(as samambaias particularmente
eram incrivelmente convincentes), e o som ambiente fora substituído por sons naturais!As conversações simuladas agora
parecem distantes, e quase não vejo outros funcionários!O cardápio foi
melhorado, e existem fichas individuais onde se pode escolher o tipo de
culinária para cada dia da semana com um simples marcar de caneta; mas ainda
assim estas tem um gosto um pouco diferente do que havia de ser. Não que esteja
reclamando!São ainda melhores do que os mesmos pratos, consumidos em outros
lugares; mas é que acho que a alimentação não deveria despertar sentimentos e
impulsos que não os naturais, os quais venho lidando desde sempre!Devem nos
temperar com algum tipo de hormônio... Isso às vezes me dá medo.
Gostaria de saber o que foi feito do meu companheiro de
sala!Será que algum dia vamos nos encontrar?..Em algum tempo onde as restrições
da empresa não façam mais sentido?
Às vezes penso em tirar férias. Esvaziar minha polpuda conta
bancária e me mudar, sem deixar rastro, para algum lugar não convencional;
ermo.Talvez eu devesse comprar uma pequena ilha.Mas quando penso em coisas como
esta tenho a impressão que ainda continuo naquela sala, a boca saliva desejando
aqueles sabores, a pele sofre um leve e cálido comichão, e os alto-falantes me
insistem para ficar...
Anderson Dias Cardoso.
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