segunda-feira, 29 de dezembro de 2014

Inês.



Falavam sempre de Inês, mal é claro. E ainda que nunca a conhecera, ou soubera alguma coisa de outra pessoa senão sua crítica e inimiga mortal, também a odiava como a poucas de suas inimizades!
Se antipatizava com sua índole preguiçosa, conformada e a voz lamentosa que se desculpava de todas as coisas à todas pessoas, porém, o pior era sua feiúra externa!
Aquele corpo obeso e atarracado, cabelos crespos, olhos embaciados... Tudo tão inaceitável num mundo onde, com modestas parcelas, a nova medicina molecular lhe permitiria se transformar em outra pessoa!
E a coisa era assim, naquela rotina de se odiar a mulherzinha fraca e feia, e se ter matéria para longas e divertidas conversas maldosas... Até que um dia o documento revirado no fundo da bolsa veio à tona!Foi uma grande surpresa descobrir que Inês esteve ali todo o tempo!



Anderson Dias Cardoso.

quinta-feira, 25 de dezembro de 2014

Um Universo Em Quarenta e Cinco Quilos.



Limpava absolutamente tudo; frente e verso, interior e exterior, de alto a baixo, com o zelo dos antigos polidores de diamantes. O corpo, a casa e sua vida cheiravam a assepsia.Gostava de álcool, cloro e lavanda, mas se ressentia das unhas carcomidas pelos produtos, e os calos amarelecidos causados pelo uso do esfregão!
Limpou, limpou, limpou; até o dia que descobriu que ela mesma era uma colônia gigantesca de bactérias, e outros micro-organismos...
Algumas pessoas não suportam a realidade!



Anderson Dias Cardoso.

sábado, 20 de dezembro de 2014

Reality Show.



Resolveu inovar no formato, ousar!Gostava da idéia de ser a criadora de um material que alcançaria a posteridade!Então decidiu que geraria um filho, e a partir da gravidez negociaria com a TV os direitos de transmissão vitalícia, sem interrupções e estabelecido em cláusula, da vida da criança!Quanto a esta, para o bom êxito da empresa, restava ser educada e acostumada com a fama e falta de privacidade, tendo a sempre sob insistência e a condicionamento para que fizesse o mesmo também com seus filhos, e os filhos de seus filhos!
Desde então gerações e gerações de atores e expectadores; milhares de milhares destes, continuam ali, estáticos, aprisionados dentro e fora de seus aparelhos de TV.



Anderson Dias Cardoso.

quinta-feira, 18 de dezembro de 2014

Homens.



O Homem mais rico do mundo.

Estava ali no canto do casebre, abraçado, como de costume, com aquele imenso cristal. Sempre ao fim da labuta (roça carpida, leite tirado e cavalos casqueados) se aquietava ali para rememorar o saudoso passado.O patrão lhe faltara novamente nas compras, e que lhe restava da comida era uma mão de arroz branco a ser cozido; mas ele não se importava!Pouco antes da morte o pai lhe entregou a pedra. Disse que desbastada renderia mais de oitocentos quilates, porém ele nunca se interessou na avaliação.E assim foi consigo, com seu filho, e o filho de seu filho...O mundo não carecia de mais diamantes.

 O Homem mais bonito do mundo.

O que se dizer de uma pessoa que sorri afetuosamente a todos, indistintamente?

 O Homem mais feliz do mundo.

A engenharia excepcional de seu cérebro lhe presenteava com generosas doses de serotonina e endorfina a cada adversidade, física, moral ou espiritual. Então ele vivia a se desculpar dessa felicidade, dessa culpa que não era culpa sua... Era da   química.



 Anderson Dias Cardoso.

terça-feira, 16 de dezembro de 2014

Da Angústia, Alegria, e Ambas.

Então ele sonhou que havia de receber um email importante, que mudaria definitivamente sua vida;mas os spams chegavam em quantidade além da sua capacidade de deletá-los, lotando sua caixa de entrada...Quem disse que foi um sonho?
 ***
 Amavam tanto a vida que fizeram "roleta russa" com suas pistolas de água meio cheias!
 ***
E um dia aquele senhor o encontrou alí, sentado numa calçada, tristeza transparecendo a quem passasse.
Perguntou o que achada de sonhos, e ele respondeu que possuía muitos.
Então ofereceu cada um deles por um dia de sua vida.
Todos eles couberam naquele último e único dia feliz, em toda sua vida!



Anderson Dias Cardoso.

sábado, 13 de dezembro de 2014

Clichê.


Cheiro forte de cloro e urina. Corpo úmido, dolorido, boca seca, e um barulho enlouquecedor de música eletrônica gritada em altos decibéis.
Eu não me sinto bem!
A cabeça confusa, gira um pouco. O estômago coagido pelos odores não suporta, cede, e eu ainda deitado me vejo engasgando com o amargo da bile que vai à boca!Ouso abrir os olhos. O encerado amarelo, sujo e alagado por uma torneira aberta. Ambiente mal iluminado, exceto por alguns flashes do canhão de luz que acabam sendo refletidos pelos espelhos imundos. Há um pouco de névoa de gelo seco invadindo o local.Um pouco de sangue no chão!Meu Deus!Sangue!
Levanto-me, depressa, e desajeitadamente cambaleio para verificar no reflexo o quanto estou ferido.
A testa aberta, o sangue coagulado e um hematoma marcando o queixo. Devo estar desmaiado há um bom tempo.Apalpo os bolsos; todos eles, mas não há chaves, ou carteira!A memória não me fornece nada além das informações daquele instante!
Tenho que sair daqui!Essa música... Não consigo respirar direito...taquicardia.
Não sei onde estou... Será que...Espera; um papel dobrado logo ali!Deve ter caído do meu bolso.
O abro com cuidado, e ele está se desmanchando em minhas mãos. Contém alguns nomes, um só riscado, mas aquela não é minha caligrafia.Meu Deus!Alguém está atrás de mim!Não posso sair daqui!Meu Deus!Essa falta de ar, e. Parece que alguém está vindo para cá!Tenho que me esconder em algum lugar!
Me arrasto para o “cercado” mais próximo, cerro a porta sem trinco, e a mantenho com os pés apoiados para impedir que entrem. Mas isso não vai segurar ninguém!
Os passos se tornam mais altos. Minha respiração pesada pode ser ouvida a quilômetros.Meu coração está saltando a boca.Acho que estou enfartando!
Eles conversam lá fora, e eu não consigo entender direito o que dizem... Preciso me controlar!Eles certamente estão me procurando!Ah!Não!A música parou!Eles vão me descobrir... Estão falando de mim, da lista...Parece que bebi demais e sumi no meio da festa...Parece que alguém me viu meio tonto, escorregando numa poça de urina e batendo a cabeça na beirada da pia, e o cara ficou apavorado achando que eu havia morrido correu para pedir socorro...Como assim, eu sou um merda?
-Ahámm-hám- Fui descendo do vaso, dando descarga e saindo abotoando a calça, como se nada houvesse acontecido.
-Ué cara!Tá maluco!O pessoal tá te procurando por toda parte!
-É que a labirintite atacou, e eu acabei batendo a cabeça na pia. Mas eu to legal agora, se bem que parece que alguém limpou meus bolsos!
-A gente te leva pra casa, a festa perdeu um pouco da graça!
-Ok!-Esses caras fingindo aí que são meus amigos, mas me chamando de “merda” pelas costa...Se fosse como nos filmes isso deveria acabar de outro jeito, mas acho que sou um merda mesmo...




Anderson Dias Cardoso.

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