Ela era aquele corpo miúdo, torcido, imóvel e dolorido no
canto da sala. Não falava senão com os olhos; se bem que em seus monólogos
agredia a quem quer que lhe passasse às vistas.Seu lugar era arejado, seu trono
era estofado de cobertas, enquanto saches e flores dos tantos visitantes procuravam
diluir o odor de urina.
A mãe a trazia para o sol, lhe penteava os cabelos, e
escovava as irregulares fileiras de dentes.
O pai, homem parrudo e bondoso, lhe trocava as fraudas, lhe
forçava a colher a boca, e contava alguma piada. O som que retornava do peito
doente deveria ser uma risada, então ele também sorria.
Vez em quando um ou outro lha pegava gemendo, e de olhos faiscantes.
Eles suspeitavam que a garota os culpava por ter nascido daquele jeito...
Ela ouvira falar em projeção em corpo alheio, e vez em
quando se imaginava furtando as pernas da mãe para dançar, o corpo do pai para
dar um corretivo no primo que lha zombava às escondidas, e as asas dum pássaro
para sumir no horizonte.
Mas sabia que essas coisas não existiam, e tinha que se
contentar com um par de rodas. Eles a levariam para onde quisesse, quando bem
entendessem...
Anderson Dias Cardoso.
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