sexta-feira, 1 de julho de 2016

O Dono da Matilha.



Ao todo, cinqüenta e quatro cães, convivendo e interagindo numa área remota, capitaneados por um homem o qual, por alguma razão, se esquecera de seu passado e havia adotado um nome qualquer. Ele os sustentava com um preparo à base do trigo plantado para si, e também para pequenos escambos realizados nas cidades circunvizinhas; e da carne de animais encontrados mortos nas rodovias, sejam pelas apressadas rodas dos automóveis, ou pelo chumbo das armas de caçadores eventuais.
A vida dos moradores do lugar; homem e cães, seguia sem qualquer arroubo, entre ciclos de trabalho pesado do primeiro, e o cio disputado das cadelas, que multiplicavam seus filhotes.
Tais eventos continuariam da mesma forma, até que do velho não restasse forças para arar a terra e coletar carcaças para alimentar seus amigos, ou que sua vida se esticasse ao seu termo. Então, haveria luto enquanto restasse vasilha cheia de ração, e seu sangue coagulado e os aromas de fermentação de seu estômago não houvessem escapado pela garganta e poros.
Daí para frente o banquete seria outro, se iniciando no corpo do dono, e passando do animal mais fraco ao mais forte, de acordo com a necessidade e oportunidade, até que a fome, o estresse e solidão, levariam em ciranda o ultimo cão.
Mas tal futuro, de forma alguma, o incomodava. Quando acontecesse, seria como se houvesse se despido de um desconfortável "terno de carne", para viver sua liberdade em outra forma. Que lhe fizessem como seus primos, os lobos, e aproveitassem suas fibras e ossos antes de atacarem uns aos outros.
Aconteceu que, num daqueles dias ouviu um forte movimento enquanto avistava ao longe a assustadora nuvem de pó sendo trazida pelo que parecia imensa caravana de carros, camionetes e trailers. Os cães se agitavam, mordendo-se uns aos outros, ganindo e rosnando quando da aproximação dos invasores.
O esforço para empurrar os animais para dentro da construção lhe rendeu alguns ferimentos de unhas e dentes. A casa era miúda. Três peças, sendo o banheiro afastado uns oito metros dalí. Lugar imundo e maltratado, cujo os cheiros nauseabundos exalados alcançavam, nos dias mais quentes, cozinha e quarto.
Uma vez acomodados, mas ainda muito agitados, passou a contar as cabeças, chamando cada um por nome os vendo, um a um, serem despertos e re-imergirem naquele frenesi logo que a voz perguntava pelo próximo animal. Constatada a presença de todos, começou uma cantoria baixa e monótona, à qual bicharada foi se aquietando paulatinamente até que o casebre se viu todo coberto por um tapete irregular e multicolorido de pelos.
O velho foi até a veneziana, esfregou o vidro com as mangas da camisa de flanela e viu todo aquele tumulto se organizando em um acampamento improvisado. Estacas foram fincadas, lonas estendidas, e com o cair da noite a iluminação ficou por conta de pequenas fogueiras, lampiões a gás e lâmpadas incandescentes ligadas em algumas baterias automotivas. O cheiro das panelas de seus recentes vizinhos não pediu licença, porém, infelizmente, os odores da casa, das fezes e os desprendidos do couro carcomido pela sarna de Augusto, Camilo, Bartolomeu e o velho Menelau, não o permitiam sentir prazer nele.
Arrastou a única cadeira do lugar e sentou-se ali mesmo a esperar que algum dos invasores viesse se sociabilizar. Por via das dúvidas, empunhava a carabina que trocara com um viajante por um bom estepe de sua antiga camionete, com a qual atropelara alguém num momento de bebedeira, em um dia chuvoso. O guarda que o abordou foi "gentil" em não lhe denunciar o crime, e só lhe cobrou o veículo e tudo o que levava na carteira. A autoridade o deixou em casa, cabeça esmagada e minando sangue, insistindo que ficasse com pneu como símbolo de boa vontade, e lembrete de que devia ser mais cauteloso com bebidas e direção.
Alguém finalmente se aproximava. Um pequeno grupo, com uma lanterna segura pelas mãos de uma miúda, e uma panela bem bojuda, que comportaria uns cinco litros, envolvida por um tecido grosso, trazida por um sujeito alto, magro e com cara de bobalhão. A mulher seguia ao lado, carregando pão e uma garrafa de vinho.
Agostinho começou a se agitar, Hipólita raspava o soalho com suas unhas, Creso rosnava e expunha suas presas quebradas. Talvez fosse melhor que não atendesse a porta.
"Novamente um Esaú venderá seus direitos por um prato de lentilhas", sussurrou Camilo, o animal de pelos castanhos, não se importando com a surpresa do homem.
A porta recebeu tímidas batidas no início, porém ele ainda tentava engolir, com garganta seca, mais aquela estranheza. Os visitantes insistiram, agora surrando-a para se fazerem notados. Os cães ladravam, arranhavam paredes e móveis, e o velho esperava que fossem embora, porém eles já o observavam através das persianas, e diziam animados que a comida estava a se esfriar. Camilo havia se virado, agora fazia o caminho contrário aos demais, os clamores que vinham de fora, e a turbulência no interior do casebre o convenceram que o melhor era receber a gentileza e despachar os visitantes.
Os invasores se apresentaram alegremente como Samuel, Wanda e obrigaram a pequena a apertar sua enrugada e calejada mão, gesto executado certamente a contra gosto. Seu nome era Dulce, e isso soou aos seus ouvidos como seu significado, a despeito da repulsa visível da garotinha. Foi aí que ele encostou a arma numa das pilastras do alpendre.
Estenderam-lhe a sopa, o vinho e o tranqüilizaram dizendo que a caravana estava ali para assistir a um evento astronômico raro, ao qual nem se importou em saber do que se tratava, mas ousou perguntar quando partiriam o que se daria dentro de uns dois meses e meio, tudo notificado, regularizado perante as autoridades locais e impossível de que tentasse qualquer tipo de recurso para antecipar a despedida daqueles estranhos.
Viu que eles haviam descarregado alguns telescópios, estruturas que certamente seriam antenas, e uma ou duas TVs de tubo brilhavam sobre mesas plásticas. Alguns perambulavam pelo acampamento, seja terminando de ajeitar o que ainda se encontrava fora do lugar, seja proseando sobre algum assunto em pequenas e animadas rodas.
Os cães haviam silenciado logo que cerrou a porta, e ele, depois de depositar num banco improvisado a comida que recebera; por cortesia, os convidou a partilharem o alimento. Estes assentiram, e ele os deixou, indo apanhar os engordurados pratos de ferro esmaltado e os copos plásticos os quais tinha impressão de terem sido adquiridos em uma feirinha de beira de estrada, não muito tempo depois do acidente.
Forçou a porta, e lhe parecia haver uma tonelada de corpos barrando sua abertura. Gritou alguns palavrões, sem se preocupar em se desculpar com seus agora convidados, desaparecendo logo em seguida dentro daquele precário lugar.
Limpou o exterior dos recipientes com um pouco de aguardente, apanhou colheres, adicionou mais dois pães dormidos à conta, e amarrou tudo e um lençol, com o qual pretendia forrar o lugar onde se encontrava os alimentos. Voltaria para pegar a cadeira, e três caixotes para compor a mesa de jantar. Andou o percurso entre a cozinha e a sala chutando alguns dos companheiros. Eles o farejavam e saltavam sobre seu corpo, aparentemente tentando lhe arrancar os aparelhos de sua mão, e iam ficando mais agressivos à medida que se aproximava da porta. Xingava baixinho os patrocinadores daquela confusão toda, ainda que tentassem lhe ser simpáticos de alguma forma, excetuando de suas pragas, é claro, a garotinha.
O velho segurou com um só braço a matula que levava, e abriu cuidadosamente a porta. Venceu alguns cães que se embolavam em sua perna direita, porém falhou em mover seu contrapé. Os outros forçavam passagem, e o corpo veio ao chão. A matilha raivosa se projetou sobre a mesa improvisada, derrubando o alimento e o vinho, atacando casal e filha.
Entre gritos, pedidos de socorro, espasmos tentando afastar tantas feras, e golpes desesperados no ar, o velho correu em busca da carabina, e foi abatendo quantos amigos fossem necessários para evitar que todos eles fossem mortos pela revolta dos que, do acampamento, certamente assistiam a violência daquela cena. Já percebia algumas pessoas do acampamento se movendo naquela direção.
Embora muito feridos, os pais foram carregados ao arraial com vida. Não houve ameaça, agressão ou qualquer manifestação de ira por parte daquele povo; talvez porque a garotinha, curiosamente, não sofrera sequer um arranhão.
O resto da noite foi só tristeza e medo. Enterrou Claus, o pastor alemão, único com algum pedigree naquele lugar, e os vira-latas Alcides, Caio Bonifácio, Luna e Valquíria. A arma estava às costas enquanto cavava, e os bichos o encaravam confusos; menos Camilo, que já não lhe fitava mais os olhos.
Depois de seus serviços, achou por bem recolher novamente os cães ao aperto do barraco. Esperou de olhos abertos noite inteira pela reação dos homens. Seria muito fácil que lançassem gasolina, e queimassem-nos, casa dono e animais de uma só vez, e ele não faria o menor esforço para salvar-se, ou algum de seus amigos.
A noite não passava, e nunca mais passou. Ergueu-se da cama, febril e com o estômago se contorcendo em náuseas, ao ouvir a movimentação dos motores lá fora. Notou que alguns deles haviam abandonado seu lugar original, se distribuindo em cerco em torno da construção. Os automóveis agora estavam de forma que os faróis iluminavam a casa, e as pessoas se mantinham distribuídas ao longo do círculo, conversando entre si em pequenos grupos, vez ou outra olhando e apontando para aquele lugar.
Às vezes ouvia gritos e vozes, mas nunca os conseguia discernir. Cães uivavam de volta, babavam-se e rosnavam ao menor ruído. Era questão de tempo que os matassem.
No terceiro dia o sol também não havia nascido. Sentia fome, e comeu o que encontrou, já que não havia feito as despesas da casa naquela semana. Esvaziou o penúltimo saco de ração em suas panelas, e vasilhas improvisadas. Os cães comeram a se fartar, e ele pensou em distribuir porções menores da próxima vez, pondo se a imaginar como se arranjariam dali para frente.
No sexto dia o acampamento recebeu a visita do carro funerário, o qual viu sendo carregado com dois corpos. Tudo ocorreu muito rápido, e fora do foco dos faróis, então não pôde identificar se haviam sido Samuel e Wanda; porém suas suspeitas se confirmaram quando viu a garotinha Dulce sendo levada pelas mãos de um outro casal, passando a brincar, se vestir e se comportar como as gêmeas daquela família, dali em diante.
A situação continuava da mesma forma, com a mesma noite eterna, os olhares, gritos, o frenesi dos cães e o medo. Não um medo comum, já que não temia ser morto naquele lugar; mas algo paradoxal, que o impedia de sair da casa. Talvez estivesse sofrendo de "síndrome do pânico", ou coisa semelhante.
Uma semana e meia, e acabara, junto com os cães, o saco restante de ração. Havia regrado como podia, a umedecendo com água, (menos a parte que lhe cabia) e entregando porções cada vez menores, mas agora não havia nada mais a se fazer.
Três dias depois e Camilo finalmente resolveu se aproximar. Certamente ele delirava de fome quando o cão insinuou que era melhor que comessem alguns de seus irmãos. O velho chorou, e suportou sua decisão de morrer faminto por mais dois dias.
Quando os cozinhou, escolheu dentre eles oito, de acordo com os critérios de idade e apego. Nenhum gemeu sob o cutelo, ainda que olhassem resignados ao seu dono.
Algumas madeiras foram retiradas para que fosse cavada uma vala para serem enterradas as vísceras, pelos e ossos dos animais, visto que até a pele foi consumida entre os esfaimados. A cozedura das carnes não foi sem muita comoção, o sabor era amargo e desciam ao estômago com calafrios. Alimentar-se-iam novamente quando a fome lhes fosse insuportável.
Outra semana e já meio que se habituara àquele pesadelo. As pessoas se alternavam em vigiar a casa, o tempo continuava escuro e a órfã e suas duas novas irmãs brincavam com uma réplica da camionete na qual havia se acidentado há alguns anos, sempre com os olhos voltados para o seu lugar. Naquele dia, a fome lhe obrigaria a sacrificar animais mais achegados, ainda que ele mesmo resolvera-se por não mais consumir daquelas carnes. Os demais minguavam por conta da miséria, e não havia quem se aproximasse para puní-los ou resgatá-los. Ele mesmo gritara algumas vezes seu desespero, mas, ao que parece, eles faziam-se de desentendidos.
Um mês e alguns dias depois, e não havia outro cão senão Camilo. Os demais se devoraram uns aos outros, restando alguns ossos roídos distribuídos pela casa. Este veio em um daqueles dias sombrios e se deitou sobre seu colo magro.
-Quando nós morreremos, Camilo? - Questionou o homem com uma voz sumida.
-Acredito que não em breve.
-Você sempre soube das coisas, meu velho amigo... O que aconteceu conosco? - A voz embargada, a boca seca e os olhos avermelhados, sem que houvesse alguma lágrima. Seu corpo mirrado podia ser carregado por um adolescente.
-A porta. Estão batendo novamente, você pode ouvir? Ela veio te visitar outra vez, e olha só, hoje você está desperto! - e à medida que o cão se levantou para atendê-la, toda a casa, como num sonho foi se transformando em pó fino, enquanto um vento muito forte e quente agitava as partículas, lhe arranhando a pele, e agredindo os pulmões.
-Eu... Eu não posso respirar - gemeu o velho, com os olhos feridos pela tempestade, e as mãos tentando cobrir nariz e boca.
-Não se preocupe você não poderia estar em lugar mais seguro. A mulher encontrava-se ajoelhada diante de si, num ponto iluminado por não se sabe o que, naquele deserto infinito que não podia ser enxergado, no entanto, sentido. Quando seus vermelhos lábios se abriram, a tormenta foi acalmada.
-O comboio?
-Eles partiram no dia anterior. Acho que desistiram de ti... Visitantes são um instituto social curioso. Nem sempre dispensam muita paciência com os convalescentes, mas  tudo se trata de uma simples obrigação, ou a busca de algum alívio moral...
-Você deve ser a morte, arriscou o homenzinho. A mulher alisou um vinco em seu vestido branquíssimo, desfez um cacho de seus longos e negros cabelos e respondeu amavelmente:
-Não. Antes, sou a vida, ou melhor, uma projeção bem particular dela. Algo entre um instinto e sua vontade de ser. Tenho estado por perto, porém afastei-me um pouco no dia de seu acidente.
-E... Eu não entendo.
-Não se aflija, nem me cobre muito, sei somente que sabe, talvez um pouco mais. Havia filho, nora e neta antes desta segunda tragédia, mas eles lhe eram como estranhos, pois quando seu crânio foi esmagado, algumas lembranças se perderam. Enquanto conversamos seu corpo; o nosso corpo, é lavado com panos úmidos e água morna. Estamos aqui por muito tempo. Há uma sonda trazendo alimento e nos hidratando, e algumas enfermeiras virão logo para nos mudar de posição, pela terceira vez neste dia. Ouvi dizer que a fiscalização multou este hospital por conta de pacientes acometidos por escaras. Mas o motivo de eu estar aqui é outro:
-Nossa audição é excelente, e temos escutado muitas coisas nestes dias, ainda que você não tenha se apercebido disto de forma consciente. Você não foi a única pessoa da família a ter sofrido um acidente grave, e é claro que sabe disso, mesmo que tenha lidado com o fato de forma instintiva e não convencional.
Aconteceu logo após aquela traumática visita, da panela de sopa, pães e garrafa de vinho. Felizmente, assim como você, sua neta sobreviveu, e se encontra sob os cuidados de um casal de amigos de seu filho. Talvez seja adotada; então, pare de se julgar culpado por aquilo que não podia de forma alguma prever ou controlar. Disseram que o motorista do outro carro havia se embriagado...
-Então tudo que de estranho que me aconteceu, a casa, os cães... Camilo?
A cabeça magra do cão acenou afirmativamente - Sim. Cada qual veste suas emoções com o corpo e forma que lhe convém.
-E... E agora.
-O mundo que construiu aqui, e que se apegou por medo e falta de um passado não existe mais. Você pode se decidir por acordar, ou não.
-E... Se eu resolver não acordar?
-O tempo aqui se comporta de forma diferente, e você pode ter uma eternidade até que resolvam desligar os aparelhos.





Anderson Dias Cardoso.

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