quinta-feira, 28 de julho de 2011

Quem se importa?


Mal se aproximara do balcão e um atendente solícito lha devolvia o sorriso.
-Então, o que deseja a senhorita?
-Gostaria de adquirir alguns metros de corda.
-Temos cordas naturais e sintéticas, de três e quatro pernas, trançadas, torcidas, com ou sem alma... -O sorriso se enlargueceu na face mostrando o orgulho de funcionário entendido- Preciso saber a finalidade para aconselhar o melhor produto.
-Quero uma suficientemente confortável para um enforcamento.
-Seria para algum animal, ou pessoa?
-Para mim mesma- Sorriu um sorriso curto, e ele retribuiu com sorriso e movimentos exagerados denotativos de sua presteza.
-Sisal está fora de cogitação, seu atrito pode causar queimaduras dolorosas e em alguns casos decapitações. Acredito que isso seria demasiado desagradável, sangue tem efeitos emocionais pouco poéticos e indesejáveis a esse tipo de morte.
-Quero o chão branco como sempre, e o menor desconforto possível.
-Aconselho uma corda trançada de nylon com alma, elas são extremamente macias e fáceis de manusear, inclusive em amarrações, nós...
-Essa deve servir! Corte-me um bom pedaço para que o serviço não me seja perdido.
-Qual seria a altura do telhado da casa da senhorita?
-Mais ou menos quatro e meio.
-É um pouco alta. A senhorita terá alguma ajuda  nessa empresa?
-Me enforcarei na parte mais baixa, onde uma cadeira me bastará.
-Vejo que sabe se preparar; mas preciso de seu peso para calcular o diâmetro mais adequado para suportar o impacto de seu corpo... À propósito a senhora já examinou as condições estruturais do seu telhado, não é mesmo?
-Claro, a casa é nova não obstante já provei o madeiramento e ele é suficientemente forte. Meu peso é 42.
-Hum... P=m.g , daí existe a tensão da corda T=m+a... Aqui está! Acredito que uma corda de nylon de 8mm deve lhe servir bem. Alguma preferência de cor?
- Acredito que amarelo trará um pouco de ironia ao evento.
-Precisa de ajuda com os nós?
-Não, meu irmão foi escoteiro.
O vendedor desapareceu por um pouco, e logo surgiu já com embrulho em mãos.
-Consegui-lhe um bom desconto, sei que não será nossa cliente, mas aceite o agrado como um presente por sua simpatia.
-Obrigado, o senhor foi muito atencioso. - Ela sorriu-lhe uma última vez e deixou a loja.
Lavou-se, vestiu uma roupa que lhe agradava e preparou cuidadosamente a amarradura, com muita calma e nenhuma excitação. Ninguém estaria em casa antes das 7:00.
Serviu-se de uma boa xícara de café recém passado,um último prazer; estendeu um metro quadrado de plástico sob as pernas da cadeira, e se descalçou das sandálias, não queria ruído algum; escalou a cadeira e deitou seu pescoço no laço.
Saltou.
O corpo não se convulsionou muito, a língua saltou rebelde da boca roxa, os olhos se reviraram nas órbitas e o conteúdo dos intestinos foi excretado naquele espetáculo sem muitos movimentos.
Ela havia escolhido o silêncio, não queria incomodar a vizinhança.


 Anderson Dias Cardoso.

domingo, 24 de julho de 2011

Um Dia Se Perdeu.

Relógio Quebrado
Acordou sentindo a falta do dia anterior, como algo não vivido, como fragmento existencial perdido por qualquer razão.
Despertara da mesma forma; braço anestesiado, vista embaçada, nada diferenciando o episódio de outros tantos, exceto pelo salto de todas as datas; do jornal à folhinha embolada na lixeira.
Ninguém reclamou o dia de trabalho ou sua presença em qualquer parte e o celular não registrou alguma chamada.
Tentando compreender o fenômeno primeiro se certificou que lhe faltava mesmo as vinte e quatro horas ligando para todos conhecidos, e a cada resposta positiva mais se angustiava e logo abandonou a imensa lista pelo meio e se esqueceu de si um pouco no conforto do sofá. Mas logo se via enlouquecido pela anormalidade temporal que lhe havia roubado um dia sem que se tivesse entorpecido, ou sofrido algum dano neurológico.
Sentou-se à mesa e vasculhou a internet casos semelhantes, e encontrou desde abduções e viagens temporais à catalepsia mas não se deu por convencido por qualquer argumento ou hipótese então saiu para capturar um pouco de realidade em uma caminhada.
Nem noite fresca, ou silêncio do horário adiantado o permitiram alguma calma e ele procurou espaços pouco iluminados para se recostar, mas em alguns minutos já perambulava novamente tentando alcançar o dia de ontem.
No dia subseqüente inquiriu à todos sobre sua experiência, e foi repreendido por sua excitação pela maioria, e no decorrer dos dias mergulhou em frenéticas pesquisas, e o assunto era mais que recorrente e as pessoas de seu convívio, cada vez mais irritadiças.
De cético passou à crédulo, não em uma teoria, mas em todas. Cada qual num momento.
Pediu demissão de seu emprego, mudou-se para a casa da mãe; temia perder outro dia para entidades malignas, para o deus Cronos, em um buraco de verme,em uma psicose,em um surto cataléptico, ou ter lembranças sendo apagadas pela doença de Alzheimer...
Já mal dormia; o dia perdido tomou sua vida inteira.

Anderson Dias Cardoso.
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