quarta-feira, 2 de novembro de 2011

Frágeis Existências 6°Capítulo.

O tremor das mãos e o gosto ruim da boca; ou a noção dos mesmos, sumiram logo que o peso das cinco peças derramadas em suas mãos o fizeram notar a falta do valor integral de seus serviços.
-Se esta é minha carta de demissão ao menos esperava que fosse entregue pelo velho, e que acertasse o que me deve com a mesma honestidade com que se gaba nas feiras e mercados!
-E ai está seu salário, descontado as ausências e as lebres que furtou!- O sorriso de Bakur não foi uma ameaça, mas brilhou uma ironia que Dre quase chegava a apreciar.
-Bons patrões fazem vista grossa à essas insignificâncias!- Fechou as poucas peças em suas mãos e olhou com desdém para as terras às costas do gigante. - Ontem mesmo elogiei-lhe as filhas, louvando suas belezas enquanto bebia alguns canecos doados, mas agora...espero que não lhe sobre alguma em suas negociatas com o Estado.
-As terras do senhor Pudup foram entregues aos anciões, agora só lhe resta suas filhas, e esta é a minha tristeza em relação à você; o ver sendo demitido em condições tão penosas ao velho!
Dre piscou rápido os olhos, e sentiu ruborizar as faces.
-Ainda tem as filhas... A pena ainda não foi o suficiente para tamanha avareza...E ainda fico feliz em saber que está na mesma situação que eu, e que não serei mais despertado por seu hálito fétido!  
-Me empregarão no mercado, não fique tão feliz pela minha sorte, mas realmente sentirei falta de machucar alguns preguiçosos... Agora, se me dá licença preciso cobrar algumas dívidas do patrão...Devo aproveitar a investidura, enquanto ainda tenho e me divertir um pouco antes de passar a carregar fardos de cereais e carne seca.
-Por que tiraram as terras do velho Pudup?-Gritou Dre ao ver se afastar Bukur.
-Vá à Praça das Sombras para saber. - A frase foi dita sem que o grande homem se voltasse, num tom triste que contrastava com a rudeza daquele corpo.
À distância as copas altas e juntas formavam uma massa uniforme de cor verde escuro, e os caules iam surgindo e se entrelaçando nas encostas talhadas do palco semicircular. Eram construtos naturais e artificiais espantosos por seu porte, integrados como vista principal da praça.
As pedras de suas ruas eram as mais delicadas e bem polidas da cidade e seus caminhos formavam desenhos sinuosos e tranqüilos que subiam e desciam por níveis suaves, passando pelos outros paredões esculpidos, ou pelas árvores mais antigas.
O sistema de canalização, e as águas fartas do rio Saguf permitiram latrinas públicas, mas agora, com um ajuntamento que se ampliava até os limites da cobertura das árvores, e o enfraquecimento das correntes de todos os rios, um cheiro forte de urina incomodavam as narinas mais sensíveis.
-Já sabem dos assuntos dos anciões?- Dre seguia o curso das gentes procurando alguém que conhecesse mais que ele.
-Acho que diz respeito às migrações, ou coisa assim- Disse um senhor de barbas emaranhadas e salpicadas de alguma fruta muito madura.
-Só pode ser algum aumento nas contribuições- Uma mulher com poucos dentes, e muito sarro nestes puxou uma corda imaginária atada ao pescoço.
Haviam opiniões absurdas, outras nem tanto, então desistiu de perguntar e andou até que a massa humana estivesse bem compactada, daí afastava todos corpos possíveis com os cotovelos para chegar à distância onde o pronunciamento fosse decentemente audível.
Esperou um tempo e meio e as pernas formigavam, o estômago era só desconforto, e as muitas vozes se alteavam à medida que se demoravam os três velhos.
O corpo pesou sufocado pela compressão e calor dos outros corpos e ele procurou se escorar em algum ombro sólido, mas, recebendo olhadelas de desprezo tentou se afastar um pouco.
Suas entranhas se contorciam pela conjuntura de bebidas do dia anterior, emoções negativas e excesso de pessoas à sua volta e não segurando o que lhe subiu do estômago à garganta regurgitou um jato viscoso de cerveja e carnes defumadas semi-digeridas.
O alvo foi o vestido puído de uma senhorinha vincada de rugas e de extravagantes cabelos cor de laranja; ela tentou revidar o desaforo, enojadissíma, mas ao ver que cambaleava no breve espaço que o asco o proporcionou quase sentiu piedade. Deu os ombros e rumou para a casa lavar-se.
Algumas mãos o ampararam antes que tombasse sobre seus fluídos, e uma outra lhe entregou uma bolsa de água para que se refrescasse, ele tomou pequenos goles e despejou o resto do conteúdo sobre os cabelos ensebados.
-Quer que o leve para a casa?- Um homem cor de bronze envelhecido já havia metido o pescoço sob o braço direito de Dre, ele usava um grosso avental e cheirava à couro cru.
-Não! Eu preciso ouvir o motivo de minha demissão- Os olhos estavam embaciados pelo esforço do vômito.
Ele ainda se utilizava do amparo do estranho quando os três pequeninos homens foram vistos caminhando em passos curtos no palco de pelo menos oitenta braças de altura.
O pequeno do centro se vestia com as cores do trigo, das chuvas, e dos bosques e este era o Sábio do Pão.
À direita outro ostentava o branco, e o azul dos céus e era conhecido como Sábio dos Conselhos.
O terceiro vestia negro, mas um dia vestira branco e era o elo entre os deuses e os homens, seu nome era Ruguel, o Sábio dos Deuses, e agora era conhecido como “O Apóstata”.
Diziam serem os três gêmeos de três mães, mas não havia característica comum alguma além da barba longa que ostentavam e, após a queda dos deuses tais histórias não recebiam credito algum, mas eram estimados e exerciam poder real sobre toda a cidade dos quatro rios.
- Os campos das redondezas se secaram, e os chacais e aves de rapina nos cercam as entradas da cidade- disseram as três vozes em uníssono e com potência e gravidade suficiente para calar o burburinho- Mas nossos rios ainda correm vivos, e não fosse a tempestade haveria certeza de trigo à todas casas.
A vertigem partiu quando se concentrou naquela voz vinda dos três afluentes barbudos; Dre agradeceu o apoio e se firmou sobre sua própria força.
-Pessoas deixam suas fazendas e casas, vendendo-as por temor, a baixos preços à aproveitadores, deixando prejudicada toda a produção de grãos e ainda minando a confiança de seus irmãos...
-Outros arrendatários não põem seus estoques à venda e ainda negligenciam o acordo de preços, e inflacionam os valores aumentando os danos desta maldita seca...
-Alguns voltaram a invocar deuses que já havíamos deixado, por serem inúteis e desnecessários, mas nós vos dizemos que um de nossos cavaleiros voltou de passar por Gatak, e as cidades esvaziadas, e sua cavalgada foi acompanhada por nuvens pesadas de chuva!
Quando a frase foi pontuada os gritos se ergueram ao ápice da loucura, e todos os povos se abraçaram esperançosos, então os sábios esperaram a diminuição do êxtase para continuar o discurso.
-Com a chegada das chuvas mudaremos as estruturas desta terra para assegurar nossa existência e expansão para as regiões despovoadas.
-No momento aproveitaremos todos os que tiveram seus campos destruídos, todos desempregados por conta da seca, e mesmo, todos os ociosos e os empregaremos na construção de barragens e valas de irrigação, perfuração de poços, construção de celeiros, coleta de adubo e ainda os agricultores, para cultivarem as terras coletivas já que à partir de hoje receberemos de volta todas as que foram arrendadas para que haja pão em toda casa à preços justos.
-Também fica proibida a venda e mudança dos que possuem terras, e fica estabelecido o cultivo compulsório destas, da qual será tributada em seis décimos para distribuição aos carentes e reserva para caso de escassez.
Houve grande murmúrio, mas diante de uma quantidade enorme de desgraçados já irritados por fome e desemprego, aqueles de maior posse resolveram por se silenciarem por hora.
-Qualquer quebra das regras estabelecidas por este conselho deverá ser notificada à câmara, e cada levante será reprimido... É um período delicado e todos os traidores da terra e de nossos irmãos deverão ser punidos exemplarmente.
Os homenzinhos partiram como sombras, e pequenos focos de discussões nasceram aqui e ali e Dre se lembrou que um dia houve um quarto Sábio, que perdera sua função depois de encontrarem esta terra propícia e sua função foi extinta com sua morte, ele era o Sábio da Guerra, e ele era o pai de Ruguel.

Continua...
Anderson Dias Cardos.

domingo, 30 de outubro de 2011

O Pé de Frango.


Repulsivamente deitado ao chão o pé de frango engordurava alguns centímetros de asfalto à sua volta, certamente era figura desprezada de algum almoço ou mesa de boteco e jazia amarelo de açafrão no centro da rua.
Não haviam resíduos em volta, nem expectadores à vista e eu imaginava o frango amputado, e saboroso sendo repartido entre pratos, e mordido nos intervalos de risos e conversas enquanto a parte solitária se aquecia de sol, juntava pó e formigas e me embrulhava o estômago.
A força de sua imagem era respeitavelmente angustiosa; uma coisa destoante e absurda centralizada na passagem dos carros, com unhas agudas e um brilho oleoso e eu não conseguia deixá-lo e continuar meu percurso.
Naquele pé havia uma história e um par, mas era exatamente sua materialidade peculiar  e estranha por falta de vestígios comuns à sacolinhas de lixo em que provavelmente estivera contido que transformava sua presença  numa arte do absurdo.
É claro que o asco me prendia, estacado, fitando-o de cima para baixo ao menos enquanto não avistava qualquer passante, e eu já lhe imaginava odores repulsivos, e imaginava a fauna invisível que errava sob, e sobre aquele pé.
E eu olhei à minha volta, envergonhado de uma atitude demais estranha e, não notando alguém me rendi à minha curiosidade e o tomei em minhas mãos.
Os dedos se mancharam levemente de amarelo, e eu comprimi umas poucas formigas que o fazia de refeição.
O cheiro me alcançou as narinas, e os lábios provaram a carne magra e amarga.
Haviam sido dois dias de muita fome, e minha dignidade foi vencida então... 

Anderson Dias Cardoso.
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