quarta-feira, 31 de agosto de 2011

Freiras e Gatos.


Sempre haviam piedades nos corações dos donos de animais quando estes procriavam.
Eram a multiplicação de criaturinhas semelhantes à mãe, frágeis e delicadas, porém nunca previstas em orçamentos ou planejamentos espaciais, então eram oferecidas à quem as quisessem.
Nem todas eram acolhidas em um lar. Haviam as defeituosas, as sem atrativos estéticos, as miúdas que seguiam como um refugo pouco desejável.
As entidades envolvidas em adoções eram muito visadas, então a solução mais criativa era depositar “caixas de vida” às portas do convento.
A instituição não recebia nenhum nome inter-denominacional, e suas religiosas eram chamadas como outras tantas: Irmãs.
A regra era depositar os enjeitados na madrugada, em embrulhos tão discretos quanto a movimentação do descartante.
Havia certa solidariedade entre aqueles que tinham tal costume, pois com certeza as criaturinhas seriam muito bem tratadas pelas freiras, não havia motivo para culpas ou remorsos, então ao serem flagrados nestes pequenos delitos se faziam de inocentes e tal “inocência” era sempre presumida por aqueles que os surpreendiam.
Ele preparou sua caixa contendo cinco gatos magros; vestiu sua roupa mais escura e esperou a noite se adiantar até horários de pouco movimento. Seu caso era de pobreza e volume excessivo de animais de estimação.
Ele traçou seu percurso até a abadia em um roteiro marginal, discreto e de muitas sombras, e ao andar apressado por quinze minutos se encontrou aos portões daquele lugar sagrado.
Ele abaixou-se ternamente e depositou a caixa próximo à passagem, apanhou cada gatinho magro e se despediu com um beijo e algumas lágrimas.
-Eu os queria comigo, mas não tenho dinheiro e tenho que cuidar de sua mãe e irmãos... Elas cuidarão bem de vocês, vão ter comida, um lar e muito carinho junto a estas mulheres de Deus.
Os passos rápidos o levaram para longe daquele lugar, e os minutos se encarregaram em conformar o coração trazendo pensamentos bons à respeito da nova vida dos feios felinos.
-Eles terão um belo futuro!Deus abençoe aquelas almas caridosas cuidadoras destas indefesas criaturas- Foi breve e sincera oração.
A madrugada era fria porém Irmã Dulce se prontificou em enfrentar o sereno e descendo lentamente a escadaria tomou a caixa de gatos, brincou puxando de leve seus bigodes e cofiando lhes os pelos da cabeça, e ao adentrar no saguão gritou à Irmã Rosa que lhe ajeitasse água e temperos para o preparo daquele desjejum magro, porém saboroso!

domingo, 28 de agosto de 2011

As Lavadeiras.


No rio das lavadeiras os lençóis eram brancos e as prosas, maliciosas.
Cantava-se sempre a vida alheia, e enquanto a roupa golpeava as pedras as línguas sibilavam segredos.
“Joana tinha amante, Cícera já abortou, Fabrício é afeminado, o vigário é alcoólatra e a moral desceu como a imundícia destas correntes quase mortas.”
E após os mexericos seguia a cantilena ensaiada, de temas iguais em maldades sonoras.
De tantas se salvava uma que era muda, e que não se ria de versos e ritmos, mas admirava-se do soar de vozes das companheiras de lida.
Elas cantavam, e ela enrubescia.
De joelhos a muda pedia voz à Deus na igrejinha enquanto solvia hinos e derramava lágrimas, e naquela noite uma palavra subiu do coração à boca, e a congregação cantou junto à ela uma música de milagres.
 A sua favorita.
No rio a nova cantante era motivo de surpresa e inveja, e naquele dia só se ouviu soar sua voz ; ao fundo uns tantos murmúrios.
Os trapos foram sendo abandonados, e os lençóis se deitaram no balaio sem ser branqueados para que os corpos cansados repousassem em pedras e montes de areia para ouvir melhor o que era cantado.
A voz e música eram algo além do significado vulgar, era vida cantada em bela voz.
O espetáculo pareceu enternecer as circundantes, e houveram abraços e congratulações pelo dom divino, encerrando-se em um divertido banho no rio espumante.
Os risos alegres se altearam além do canto e no círculo das amigas e um rosto rompeu as águas, tentou emergir rápido da brincadeira, mas uma, outra e várias mãos se assomaram no esforço de mantê-la em seu desconforto.
O ar se foi de seus pulmões, levando consigo a vida e canto e o corpo foi liberto para descer a corrente como balsa vazia.
As lavadeiras se puseram às margens para observar a viagem, e cantaram com deboche a música viva que haviam escutado da companheira.
A cerimônia se encerrou com uma reverência, e logo as roupas eram novamente lavadas ao som de uma música que cantava a morte de uma virtuosa lavadeira por invejosas companheiras de ofício.

Anderson Dias Cardoso.
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