domingo, 6 de abril de 2014

Êxodo Digital-Parte Final.


A semana seguinte foi especialmente difícil; e acabei sendo demitido por conta das faltas, já que gastava cada hora do dia diante do monitor, esperando notícias e imaginando se não havia sido enganado, e o corpo de minha mãe desovado em algum dos milhares de lixões regionais, ou se aqueles profissionais eram mesmo gabaritados e conseguiriam lha transpor integralmente, e sem seqüelas.
Finalmente a tela piscou um aviso, eu o abri, anotei o código e fui esperar que houvesse algum transporte público que me levasse àquele lugar.
Novamente haviam filas, a costumeira sujeira, restos de embalagens e crianças chorando por todo o pavilhão. Uma organizadora tentava gritar mais do que aquele tumulto, mas logo que se afastava do ponto em que solucionava alguma querela, a baderna se restabelecia, e os oportunistas empurravam, intimidavam e ludibriavam quem pudessem.
A espera durou oito horas, e me encaminharam para uma salinha com uma tela nada modesta, do tipo que não se costumava a ver desde que limitaram o consumo ao necessário tentando diminuir os resíduos, e eis que este também me apresentava uma sala semelhante, com as mesmas medidas, objetos e uma portinha branca trancada sempre pelo lado de fora.
Ela entrou, e parecia meio desconfiada. Trazia consigo um bloco de papel.Puxou a cadeira acolchoada e se sentou.Seu aspecto era um pouco melhor; a cor lhe havia retornado às bochechas e os olhos quase brilhavam.Me estendeu a mão, e eu toquei a tela.
-Me... Me perdoa...
Ela baixou os olhos, parecia ter se entristecido profundamente com minhas palavras. Abriu a papelada e escrevia alguma coisa.
-“Houveram alguns probleminhas, minha voz sumiu de vez, mas eles dizem que foi apenas um trauma... Ela deve retornar em breve.”
-Eu não devia ter feito isto com a senhora...
-“Eu quero te mostrar uma coisa”. -E ela foi erguendo a blusa, e mostrando o lugar onde deveria haver um ferimento.-“Você me curou!”
Eu não pude dizer nada; sentia-me confuso e culpado.
-“Aqui é um bom lugar, bem parecido com o que era antes do colapso. Eles me deram uma casinha, mantiveram minhas pensões. Eu revi alguns amigos e estou fazendo alguns outros...”
-“Eles disseram que este mundo está quase completo, e você devia ver o céu daqui! Como é lindo, límpido e tão estrelado!”
Eu soluçava um choro contido, e me custava ler o que ela me escrevia.
“Não chore! Eles nos disseram que logo quase todos vocês estarão aqui conosco, e tudo será como antes...”-a mão começou a tremer a escrita, e a mulher contorceu a boca e cacarejou algum som, antes que explodisse em uma convulsão e espumasse a boca.
-Mãe?-O coração trotou no peito, e eu arranhava a tela, enquanto via um grupo de homens invadirem a sala, arrastá-la aos berros enquanto alguém tentar desligar o vídeo. Nunca mais a veria!
Saí possesso da sala, agarrei a moça da informação tentando lhe obrigar a me responder o que havia acontecido com minha mãe. Ela se desculpou aos berros e lágrimas, disse que nada sabia para dentro daquelas portas.Eu a forcei com socos, nos olhos, na boca, no nariz, mas ela apenas gritava e se debatia.Uma dúzia de outros funcionários vieram em socorro, e me espancaram com a mesma severidade.Perdi a consciência várias vezes, e senti muitos dentes nadando na boca; foi quando nos apareceu um engravatado e todo o pessoal lhe indagava se  deviam sumir comigo, ou me entregar à polícia.
-Ele é só um maluco!Deixem-no ir cuidar das suas feridas. Nós registraremos um boletim contra ele, alertaremos ao serviço social para lhe diminuir as rações da família .Avise seu novo empregador para ficar de olho nele!No mais ele não pode fazer nada!O cronograma de conversão conta com a mídia, a política e o dinheiro para calar os discordantes.
-Vá embora vagabundo!Rosnou o maior deles, e bateu forte com seu pé no chão. Eu me levantei de sobressalto,escorregando como um cão enxotado um  pique, para me distanciar de outra surra, enquanto todos se riam de mim!
Contei à minha esposa, e ela também se indignou; então nos propusermos a buscar discretamente por outras pessoas que houvessem sofrido agravo semelhante, mas as poucas encontradas se sentiam receosas à princípio, e passavam a nos evitar ao longo do tempo. Mudamos a estratégia e imprimimos alguns panfletos, baseados em pesquisas e relatos, que encorajavam a desistir daquela tecnologia, e os espalhávamos nas caixas de correio das vizinhanças, tentando ao menos fomentar alguma discussão, mas a única pessoa à nos manifestar solidariedade foi um vizinho amalucado que jurava ter tido seu cão engolido por uma torradeira!
Uma noite nos foi deixado um bilhete dizendo que a paciência havia de se acabar, e na semana seguinte os caminhões de entrega nos deixavam uma ração de categoria muito inferior, à qual, em datas não muito remotas, haviam suspeitas de terem sido cultivadas em solo contaminado por radiação. Trocamos todos os objetos que possuíamos em casa por alimento,mas logo nos víamos forçados a completar as calorias e vitaminas requeridas com aquilo que nos forneciam!
À despeito de tudo isto, persistimos por mais ou menos uns dois anos ainda; até o dia em que minha esposa defecou sangue, e os exames nos confirmaram a metástase!
Nós fomos vencidos, zombados por toda vizinhança pela nossa contradição!Cinco dias após requisitávamos nossos passaportes para a virtualidade, e invocávamos a cláusula da “Letalidade Iminente” para nos adiantarem na fila de espera!
De fato aquela era mesmo uma versão perfeita e saudável do primeiro mundo; mas as pessoas pareciam mudadas!Ostentavam olhares ferozes, falava com despeito umas às outras e até as formalidades e status econômico-social, planejados desde o começo pareciam ser mantidos com extrema dificuldade!Os novos peregrinos eram bem acolhidos somente, e quando, por suas famílias. Quanto aos órfãos e deslocados, estes eram expulsos para as periferias e guetos das cidades!
Eu e minha esposa fizemos uso do auxilio que o governo oferecia aos recém chegados para sua adaptação psícossocial, até que tivessem condições de serem readmitidos na cadeia produtiva e comunidade.
Isolamos-nos totalmente, e nos recordávamos e cogitávamos se minha mãe estava certa quanto à alma, já que nós mesmos nos sentíamos meio distantes e impessoais.
Acabado o período de ajuda não conseguimos nos integrar, e minha esposa estava grávida de sete meses. Fomos sumariamente expulsos de nossas casas, e vagueamos como esmolantes sob uma lona e outra, acompanhados por uns outros tantos vagabundos descontentes.
Numa noite chuvosa ela sentiu as contrações, e corremos para o esqueleto de hospital que se avizinhava. Pedimos permissão ao grupo que o invadia, e fomos tropeçando em caídos até bem próximo do fogo!
A parteira improvisada cortou com faca de cozinha o cordão, e a criaturinha contorcia seu inchaço em mãos lavadas com água de chuva. Era linda!Perfeita...
Mas não se tratava de nada além de um pacote de dados!



Fim.
 Anderson Dias Cardoso.

2 comentários:

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