sexta-feira, 26 de outubro de 2012

Indigente Tecnológico.



Após findarem exitosamente a engenharia do homem sintético levaram à cabo a execução esmerada de um corpo externo tão semelhante aos demais que já não podiam dizer que não vivia!
Implantaram memórias de abandono de uma família inexistente, traumas e abusos e o libertaram para ser discreto experimento social nas ruas de alguma metrópole e esmolar por sobrevivência.
A aparelhagem contava com reguladores térmicos, simuladores de processos orgânicos internos, efeitos circulatórios, reparação de tecidos; além de reproduzirem fielmente pequenos distúrbios e somatizações que garantiam veracidade ao tempo que não provocassem mal estar suficiente para a necessidade de cuidados médicos.
 Os receptores visuais repassavam a triste rotina, do errante ao Laboratório Comportamental, vez por outra embaciados pelas frustrações, carências e angústias.
O mecanismo de interpretação de fome e seus processos reagiam sempre tristemente às sobras vencidas que freqüentemente lho ofertavam.
O corpo, de aparentes quarenta anos, sofria comichões pela imundícia que lhe cobria os poros, mas quando se refrescava em qualquer torneira exposta, se agasalhava nos mesmos mau-cheirosos trapos dantes.
Foi acoitado por calmaria e frio.
Encontrou amigos para repartir o pão.
Viveu um único amor, (ainda que houvesse se enamorado por tantas belezas passantes), e o sentimento o levou a acreditar que era sua a criança que a mulher levava no ventre.
Sofreu, quando a mulher se perdeu nas drogas, e mesmo quando lhe disse e reafirmou o seu amor, em delírios aquela alma negou o conhecer.
Em sua tragédia a mulher, ainda que em outras dimensões de consciência, lhe impediu o acesso ao filho, para depois o abandonar à morte por inanição enquanto aspirava a deliciosa marica.
O homem se desgostou de sua condição, de suas perdas, de sua meia humanidade (ainda que não a soubesse nem possuir tal metade!) e se deixou vagar vencido sem qualquer relação até que o peito acusou a dor!
Era sintoma de bateria falida; e o corpo do Adão tecnológico foi encontrado no descaso de uma rua lamacenta da periferia.
Foi enterrado como indigente numa vala comum, e seus olhos ainda transmitiam imagens enquanto a terra cobria-lhe a carcaça.
Alguns engenheiros choraram seus sentimentos, à despeito do sucesso da empreitada... 


 
Anderson Dias Cardoso.

4 comentários:

Masturbação Mental disse...

"Era sintoma de bateria falida; e o corpo do Adão tecnológico foi encontrado no descaso de uma rua lamacenta da periferia."
Que linda frase!
E assim caminha a humanidade Anderson, e é nesse passo que ela se perderá. Por completo!

Excelente!
Até mais ler.

Vampira Dea disse...

Fico me perguntando se isso já não está acontecendo...
Profundo texto,adoro e passo um tempo ruminando rsrrs
feliz semana

Célia disse...

Massa! E onde vc encontra foto compatíveis com seus textos? rsrs...A imagem acrescenta vida ainda maior às linhas que já são vivas! Parabéns sempre!

Masturbação Mental disse...

Essa coisa do mágico não revelar o que há na cartola é um "saco". Para sua sorte, você é Anderson Cardoso, um dos maiores contistas de todos os tempos.
Falo sobre as imagens que a Célia disse "que dão ainda vida Às linhas que já são vivas!"
Ei e eu vim agradecer pelo carinho. Nem sei como te contar de minha admiração e gratidão por você kra. Obrigado msm. E eu tou esperando outro Texto seu, nesses dias que estou mais sossegado, de trabalho e de escola, eu tenho mais fome e sede por leitura. Rsrs.
Este comentário fica a critério.
Um abraço, companheiro!
Até mais ler...

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