quinta-feira, 14 de abril de 2011

Fetiche.


No acidente o carro lhe levou uma perna; belíssima, torneada como uma coluna de bronze e terminada em pezinho delicado, que deixou sua imagem inversa como uma peça de saudades!
Após o doloroso luto um conformismo discreto quase lhe alegrou o coração, mas ainda se negava a fitar o lugar mutilado.
Eu, entre carícias e palavras de conforto não me mostrava chocado com aquela falta e ainda me espantava com a formosura restante. Então a confiança pôde retornar; a erguendo pelas mãos lhes fez recobrar a vida, e o sorriso se tornou constante, se viu preparada para receber sua nova perna!
Ela se encaixou no ponto de vergonha e minha linda era de novo uma infanta, ousada em seus passos e rodopios e ao cabo de dias a intimidade das partes a levou às brincadeiras mais extravagantes.
Numa ocasião, descobertas ambas pernas o luzir da perna metálica me despertou a curiosidade, e me encantei com sua força e rigidez. Seu toque frio seduziu-me o tato e meus olhos fugiam constantemente do foco dos olhos negros para o lustroso aparato!
Uma compulsão foi o que se tornou para mim! Ao invés da maciez dos fios escuros preferia acariciá-la onde não era ela! E eu tentava disfarçar tal interesse alternando minha atenção entre o aço e a carne!
O namoro levou ao casamento e o amor foi envelhecendo junto aos corpos e aquela perna se mantinha  eterna, tanto pelo zelo quanto pela muda de peças, enquanto a outra tinha transtornado seu aspecto, minada de rugas, manchas, varizes, estrias e salpicada de sulcos faziam me resvalar numa repulsa inconsciente...
Não obstante meu amor foi fiel até seu fim, nenhuma carne me atraiu, de forma alguma a traí, e se fraquejou alguma vez o coração o que seduziu não pôde me retribuir os chamegos;
Meu outro afeto era frígido, rígido e inoxidável!

Anderson Dias Cardoso. 

6 comentários:

Jhonatan Thiago disse...

Caramba, que lindo!

Seus textos são tão intensos e impecáveis. A colocação que você dá ao afeto no final é perfeita.

Célia disse...

Mais um texto fantástico! eu, fico só de boca aberta mesmo, imaginando todas as cenas e lendo de forma curiosa, o desfecho de tão lindas histórias!

L. B. disse...

Eu nao sei se eu to sendo repetitiva, mas eu fico abismada com o que vc traz de novo pra minha vida. São coisas que eu, no auge das minhas 'viagens', nunca ousei pensar.

Obrigada pelas reflexões e pelo despertar desse sentimento dentro de mim que eu ainda não sei o nome. Pode ser bondade, vontade de encarar o mundo de outra forma. Ou talvez, só paz. =]

Jaqueline disse...

Ótimo texto! Diferente e inovador... acho que não existiriam palavras melhores.

Lídia Vasconcelos disse...

Anderson, querido amigo, eu achava que já tinha lido os melhores contos da literatura brasileira até conhecer você! Já salvei sua página nos meus favoritos e a minha parada aqui será prazerosamente obrigatória! Beijão!

Vampira Dea disse...

A cada texto seu que leio me impressiono mais. A profundidade com que vc toca a vida, o humano, o comportamento, as fraquezas,sem nenhum pudor, me coram e me fazem refletir por muito tempo.
Obrigada por escrever assim. Esse texto dos que eu já li, foi o que mais me tocou.
Parabéns. Beijos.

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