domingo, 20 de novembro de 2011

Visita Íntima.

Quando os cheiros de pequi e frango lha acariciaram as narinas ela sorriu; um sorriso melancólico, espaçado demais de qualquer outro.
Provou o tempero, sentiu o açafrão tocar suave a língua e se lembrou de elogios e carícias e a saudade moveu algo no peito. Ela mandou que o sentimento aguardasse.
Lavou-se do suor e da gordura em água fria, esfregou com o resto de condicionador os cabelos escuros e quando se secou o corpo pediu uma gota de perfume para tornar sua simplicidade um pouco atraente.
O pano de prato atou a marmita com um nó arrochado, a garrafa de suco se assentou junto ao amarrado na rota bolsa e logo ela corria ao ponto, temerosa de perder a hora da condução.
Era magra, seus olhos pesavam de tristeza e sua pressa nunca a deixava ser percebida por quem a pudesse oferecer alguma compaixão, então seguia seus ciclos de trabalhos e visitas tão naturalmente como se seu fardo se tivesse incorporado à vida.
A viagem, apertada e quente, durou além de suas duas horas e meia.
O pátio-estacionamento do lugar se movimentava com uma torrente de outros sofridos em quanto o sol ofuscava e atiçava suas ansiedades com seu incômodo. A maioria ali era de mães e esposas de detentos.
E assim como em toda fila são compartilhadas vidas em conversas de oportunidade, naquela a afinidade de sofrimento trazia um pouco alento e empatia aos visitantes que se distraiam em reclamações e queixas.
Débora permaneceu silenciosa em todo percurso, e quando virou à direita no sólido e estreito corredor do complexo lhe apontaram um outro segmento.Quando sua mão empurrou a porta indicada se encontrou em um claustro.
Ela esperou.
-Dispa-se!- A voz não tinha tom identificável de sentimento algum, mas ela se assustou com a forma rude e agigantada do agente.
-A televisão disse que eu podia reivindicar uma agente...
-Isso aqui é a realidade dona- A voz intimidou, e a amedrontou por tamanha brutalidade e o corpo do homem se arqueou em sua direção ameaçadoramente- e nela só há uma agente para nem sei quantas mulheres!Tire logo essa maldita roupa se quer ver o desgraçado do seu marido!
Ela tentou outra reclamação, mas logo ele já estava junto ao corpo.
Tateou os ombros, correu as mãos pelos braços descarnados e ela fechou os olhos e murmurava uma oração de livramento.
As mãos lhe apalparam os seios dolorosamente- Estes filhos da puta desses repórteres gostam de moralizar a instituição, mas não sabem o inferno que é trabalhar por aqui- as mãos desceram às poucas curvas que possuía até o ventre; a mulher tremeu de asco e horror.
-Toda humilhação que passamos aqui, as condições ruins de trabalho e o perigo constante de lidar com essa raça de desgraçados...
A boca secou-se, e ela conteve ainda nas órbitas as lágrimas de vergonha.
-Pronto, senhora!Agora pode ir lá ver seu esposo- A voz voltara à monotonia anterior e ele deu um passo ao lado esperando que ela recolhesse suas vestes e saísse.
Antes que cerrasse a porta atrás de si ouviu-o elogiar o cheiro da comida- Você é uma boa mulher, não irei violar suas coisas...
Ao indicarem a cela de visitas íntimas ela terminou cabisbaixa o trajeto até chegar ao cômodo gradeado, de privacidade montada de lençóis e cobertores. Os carcereiros estipularam seu tempo, e ela entrou.
O leito era um armado de cimento e espumas amarelas saltando de seus forros, o cheiro de suor e mofo enjoavam-na o estômago.
Notou um pequeno dobrado sob a cama, apanhou-o, arranjou melhor o lençol e se sentou para ler.
Quando os olhos pontuaram a última linha, um, que não era seu marido adentrou a semi-tenda e ela entendeu o que devia fazer.
Seu marido não a encontraria daquela vez.
Ela abafou seus gemidos de asco, enquanto o homem alteava os seus, de prazer; como símbolo de posse e potência.
A droga consumida sempre era paga... Nem sempre em espécie...
O coito durou tanto quanto o valor da dívida, e quando o estranho a deixou ela ainda continha suas lágrimas.
-Pode entregar isto ao meu marido?- A palavra se desprendera da boca, mais dorida que nunca, e ela moveu o embrulhado ao homem.
Quando o aroma da comida se escapou dos intervalos da marmita e encheu todo o ambiente a carranca do homem se tornou em sorriso, e a língua saiu de sua toca, e varreu prazerosamente seus lábios, e enquanto deixava o lugar seus dedos já desatavam os nós...

Anderson Dias Cardoso.

Um comentário:

Marcela disse...

Nossa.
as palavras saltaram entre os versos, cativante, mas triste.
Estranhamente pude sentir a realidade desse texto, como uma pessoa possa sujeitar em nome do "amor".
Chega a ser cruel...
O texto, como sempre, foi muito bem escrito. Palavras bem escolhidas e deram um toque de emoção.
Parabéns!!!

http://mmelomaisdomesmo.blogspot.com/2011/11/so-por-hoje.html

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