domingo, 13 de novembro de 2011

No Paredão.


Havia desmontado, engraxado e montado a peça como outras tantas vezes. A farda verde incomodava, como um sinal de ofício, mas ainda a mantinha limpa e as botas reluzentes para que não me denunciassem mais imundícias do que carregava em minha função.
Reuníamo-nos alguns minutos antes, num refeitório manchado de gordura e nos sufocávamos com este ingrediente volatizado em um ar denso, acrescido de fumaça de cigarros.
Falávamos muito de pornografia, e nos desrespeitávamos uns aos outros enquanto as cozinheiras nos azeitavam alguns pães e nos preparavam refrescos instantâneos.
Eles sempre vinham pouco adoçados; acho que era a vingança pela desordem que causávamos, e pelos palavrões que cuspíamos!
-Já é hora!- Ruan era a figura silenciosa que sempre  surgia de surpresa à porta e convidava-nos a nos lembrar à que estávamos naquele lugar.
Um apagou o “toco” de cigarro, outro engoliu o resto do líquido insosso e uma piada sobre prostitutas panamenhas foi terminada sem riso algum.
Andamos em fila para o pátio, e eu me enxergava como figura única e descontente e meus pensamentos falavam tão alto que vez ou outra notava uma olhadela do anterior, ou posterior, em minha direção.
Procurava às vezes sincronizar meus passos aos demais, isto me relaxava um pouco, mas a brevidade do corredor me levou depressa ao exterior,e me foi jorrada uma luz forte, de um dia limpo que me feriu os olhos de forma que me esqueci por um momento.
Nossa praxe era nos alinhar lado a lado, de costas para o “Paredão”.
Éramos supersticiosos quanto aos olhares dos condenados.
As armas foram verificadas novamente, os cartuchos postos e houve um disparo teste para que se evitasse o constrangimento de uma falha diante dos assistidores, e só então nos foi trazido o “morto”.
A pobre criatura se arrastou chorosa para a região central; nada me dizia de inocência ou culpa; e era apenas uma bala à ser disparada e outros afazeres menos desagradáveis seriam o alívio para toda aquela tensão.
Foi dado o comando e todos se posicionaram corretamente, outra palavra e as armas foram apontadas à um corpo que erguia pateticamente as mãos espalmadas como aparadoras do tiro.
Era um “dançarino” de segundos que seria morto por qualquer banalidade aumentada à importância de ameaça de Estado; uma discordância com obrigação de ser silenciada, no lugar onde a inerência da opinião era coisa relativa!
-Fogo!!!- Os estampidos dos tiros abafaram os gemidos, o ar se encheu de fumo e o corpo se deitou sob o peso da gravidade, sem muitos movimentos.
A piedade antecipou se ao tiro e minha arma voltava carregada ao quartel.
Ao menos daquela vez não quis ser responsável por uma morte.

Anderson Dias Cardoso.

2 comentários:

raylsonbruno disse...

Simples e supreendente. Final perfeito! Gostei bastante!

Penélope disse...

A piedade antecipou o tiro e minha arma voltou carregada ao quartel.
Ao menos daquela vez não quis ser responsável por uma morte.

Seus contos são sempre meticulosos e bem trabalhados na coerência e coesão.

Gostaria de ter mais tempo para passar sempre e ler seus relatos, suas histórias...
Grata pela sua presença em minhas páginas.
Abraço

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